sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Arquitetura e Cinema (1)

À Evaldo Coutinho e Bernardo Dimenstein.

“Dentro de um filme a arquitetura pode ser tratada de duas formas, uma conceitual e outra prática: pode ser o foco onde os cineastas, ou a indústria do cinema expõe os seus conceitos sobre a arquitetura ou pode-se acentuar a presença de práticas arquitetônicas dentro do próprio cinema” (2).

Conceitos


Arte – Embora não exista um consenso definitivo sobre o que seja arte, se fizermos algumas relações poderemos ter uma idéia aproximada. O leitor deve ter, pelo menos, sua concepção pessoal do que ela seja e é capaz de identificar um objeto artístico de outro que não seja, o que já é suficiente para o que se pretende aqui. A idéia sobre arte é tão pessoal e tão ampla quanto a experiência e a intuição de cada um e não nos impede impede de cometer eqívocos.

Gênero artístico – Ainda que apenas tendo uma idéia pessoal sobre o que seja arte já é necessário dar um passo adiante para definir o que vem a ser um gênero artístico. A arte é
algo que possui características que a particulariza e outorga-lhe autonomia em relação a outras atividades humanas. A par dessa autonomia é possível fazer uma distinção, dentro do grande grupo, dos gêneros artísticos. Uma forma prática de agrupar é a partir da identificação da matéria de cada gênero. Assim, a matéria do Cinema é imagem em movimento; a matéria Pintura é a cor; a matéria da Arquitetura é o espaço tridimensional, da Escultura é o volume, e assim sucessivamente. Estando essa matéria presente no objeto artístico, sem nenhuma outra matéria de outro gênero artístico, se diz que há um gênero puro. A concepção de um gênero artístico puro é um modelo teórico, difícil de verificar na prática, ainda mais em Arquitetura e Cinema, mas encontra validade aqui para verificarmos que as relações entre estes gêneros iniciam desde o estabelecimento de conceitos primitivos de arte e gênero.

Autoria artística – Alguns objetos artísticos são de autoria de um único indivíduo, não são de autoria compartilhada ou criações coletivas, exemplos disso são quadros, esculturas, composições, versos e quase toda prosa que se conhece. Em Arquitetura e Cinema a autoria de uma obra é sempre de um conjunto de pessoas mesmo que predomine a idéia de um único indivíduo, e as exceções confirmam a regra.

Fronteira estética – Os objetos artísticos estabelecem o que se conhece por fronteira estética, que é o limite entre cena e espectador, isso fica bem claro quando contemplamos um quadro na parede, que permite reconhecer uma paisagem familiar mas impede-nos de in
teragir com ela, pois o que há naquela moldura não é realidade em si, mas uma representação da realidade. A fronteira estética é o que nos mantém afastados da representação. Mas em Arquitetura a fronteira estética não é condição imperativa da natureza artística dos lugares arquiteturais porque neles a fronteira estética não existe, nem por isso a Arquitetura deixa de ser arte. O sujeito espectador, nos lugares arquiteturais, encontra-se completamente envolvido pelo objeto artístico, desde o momento da concepção (autoria compartilhada) até o momento do usufruto (pessoa arquitetural), e com ele interage. A natureza artística do lugar arquitetural permite que ele seja, ao mesmo tempo, lugar de ação e de representação, sem fronteira estética.

Ambos, Arquitetura (sempre) e Cinema (nem sempre), não estabelecem fronteira estética. Os demais gêneros artísticos sempre estabelecem fronteira estética.

O Cinema utiliza-se de lugares arquiteturais e pessoas arquiteturais para sua realização. Os lugares arquiteturais do Cinema são a locação e o estúdio. As pessoas arquiteturais do cinema são os técnicos e os atores, entre eles e a representação não há fronteira estética, é possível interagir com a cena. Situação oposta acontece na platéia do cine, também formada p
or pessoas arquiteturais desde que o edifício que as abriga é um objeto arquitetural mas, no momento da exibição pública, o Cinema estabelece fronteira estética porque o que há na tela não é realidade em si, mas uma representação da realidade, que já não permite interagir com a cena.

Categorias de realidade dos lugares cinematográficos

No domínio do real nem todas as possibilidades imagináveis se concretizam, motivo pela qual a arte tende a superar a realidade mesmo quando a retrata fielmente, porque ela permite possibilidades muito além desta, razão de assegurar para a arte sua existência privilegiada e encontrá-la como possibilitadora de uma subjetividade que dialoga com a realidade. Categorizá-la, começando por definir o universo da realidade, cumpre o objetivo de distinguir os níveis de representação de todos os lugares, inclusive dos lugares cinematográficos. A Figura 1 mostra, esquematicamente, que os lugares se organizam como subconjuntos do universo da realidade que parte do geral e chega ao particular em níveis concêntricos. Como se verificará adiante, é redundante fazer essa distinção para os lugares arquiteturais porque eles são, sempre, realidade. Cabe apenas assinalar a existência de um conjunto de lugares arquitetônicos pertencente ao universo da realidade.

O universo da realidade não pode ser definido com precisão, é aceito com base na experiência e intuição pessoais. Nele está presente tudo o que é material e o que é possível materializar-se, basta que algo seja apenas cogitado para que, de alguma forma, faça parte deste universo. As idéias e a expressão das idéias fazem parte do universo da realidade sob um estatuto diferente das coisas e das pessoas; as primeiras são realidades virtuais, as segundas são realidades efetivas e ambas se interpenetram. O universo da realidade é o quadro de primeira referência para o estudo das representações e de todos os espaços possíveis em qualquer dimensão, esses espaços são os lugares de ação do homem. No universo da realidade situam-se os lugares arquiteturais, que são inúmeros, classificados, quase sempre, conforme suas funções e características. Aqui interessa os que são utilizados pelo cinema, doravante chamados lugares cinematográficos.

Todo e qualquer lugar cinematográfico está contido dentro do universo da realidade, mas não tem de ser um lugar arquitetural. A possibilidade de um lugar ser ou não cinematográfico é temporária e não-obrigatória. Um lugar cinematográfico pode ter sido concebido com essa destinação exclusiva, como um estúdio de filmagens ou uma sala de exibição, e assim ele permanece indefinidamente, outro pode ter sorte inversa e tornar-se lugar não-cinematográfico. Alguns lugares possuem essa destinação de forma potencial, ou seja, um dia podem vir a ser lugares cinematográficos, conforme as necessidades, estes são lugares cinematográficos eventualmente. A distinção entre o lugar cinematográfico, o não-cinematográfico e o cinematográfico eventualmente se faz pela presença ou ausência da intenção e da função artística juntas. Basta a presença de um projetor para que o lugar não-cinematográfico se converta, automaticamente, em cinematográfico? Não, pois se assim fosse uma projeção ao ar livre ou um “home theather” qualificariam-se como lugares cinematográficos, o que não ocorre. Os cines exigem um projeto arquitetônico especifico que os particulariza e os diferencia de qualquer outro tipo de construção. Os cines têm sua origem nos teatros adaptadas à projeção. Com o passar do tempo eles evoluíram, deixaram de ser cines-teatros com caixas cênicas italianas e telas no proscênio, adquiriram função exclusiva para exibição de filmes, atendendo a exigências técnicas que inexistem no espetáculo teatral. Mesmo que os cines atuais ainda lembrem um teatro ou eventualmente um teatro possa ser usado pra exibição de filmes, eles não são a mesma coisa, há uma semelhança que apenas revela um parentesco filial. É obrigação do arquiteto que projeta um cine conhecer as especificações técnicas e dotá-lo de intenção e função artística, sem o qual um cine dificilmente qualifica-se como lugar cinematográfico, cuja existência e conformação privilegiada assemelham-se, na intenção e função artísticas, não nas especificações técnicas, àqueles outros lugares do universo da realidade que servem aos propósitos de outros gêneros artísticos, como museus, galerias, salas de concerto e ateliês.

Uma vez que são as especificações técnicas, intenção e função artística que qualificam os lugares do fazer artístico, nos lugares cinematográficos há ainda uma distinção a ser feita entre os lugares de cenas (set) e os lugares de projeções (cines). Nos primeiros acontece a produção cinematográfica, a fronteira estética é inexistente, pois ele também é lugar arquitetônico onde atua o arquiteto-cenógrafo e os demais membros da equipe. Nos segundos acontece a exibição, a fronteira estética existe, pois embora também seja um lugar arquitetônico, é, sobretudo, de representação, em tela, dos lugares arquitetônicos que antes serviram como lugares de cenas.

Categorias de representação

Para falar em categorias de representação é necessário admitir que o universo da realidade (ver Figura 1) comporta as representações. Não é fácil admitir que a realidade à qual nos habituamos possa ser uma representação, embora seja perfeitamente possível admitir que ela contenha representações; o mais comum é considerar realidade e representação como entidades distintas enquanto, de fato elas apenas participarem de estatutos diferentes que se interpenetrarem produzindo “delírios de interpretação” no observador que, algumas vezes, pode até chegar a confundir figura (representação) com objeto (realidade).

As categorias de representação organizam-se em vários níveis sucessíveis. O primeiro nível de representação é o que serve de referência para os níveis seguintes e, como tal, parece mais real do que os níveis seguintes. Assim sendo, se estabelece uma cadeia de representações, na qual cada representação se afasta da anterior como reflexos de espelhos sucessivos que mostram imagens que mesmo distanciadas e distorcidas ainda guardam semelhança com o objeto primeiro (real). À representação basta oferecer uma imagem do real, não ele próprio. Essa imagem atinge o observador de maneira particular, sem cumprir as leis próprias enunciadas pela ciência e pela lógica que imperam no universo da realidade. A representação é sempre uma subtração enriquecedora e surpreendente, dentre tantas possíveis, que não esgota os significados múltiplos não substitui nem reduz o valor da realidade, com a qual dialoga.


Categorias de representação nos lugares arquitetônicos.

A realidade é susceptível de ser plasticamente tratada pela arte. A Arquitetura tematiza a realidade em sua integral tridimensionalidade, enquanto os outros gêneros artísticos apenas a representam. Entretanto a Arquitetura não deixa de ser, ela mesma, uma representação, ela é, pelo menos, a representação tridimensional interpenetrante dos desígnios do arquiteto, como uma fotografia é a representação bidimensional dos desígnios do fotógrafo. Este raciocínio só é aceito porque a arte evolui num meio diferente do racional, como “algo que não se pode formular e, no entanto, se sente compreender” (3).

Conceber a representação em Arquitetura é conciliar dois conceitos aparentemente antagônicos, quais sejam o da realidade e da representação. Deve-se ter em mente que a representação em Arquitetura se dá unicamente no primeiro nível, que é o da realidade, por isso a Arquitetura é tida como arte de realidade. Essa particularidade deste gênero artístico determina a natureza do lugar arquitetural e talvez explique a razão pela qual a Arquitetura é objeto e meio de exploração dos limites dos sistemas de representação artística.

A grande particularidade da Arquitetura consiste em ela ser uma representação que não se permite representar plenamente por nenhum outro meio de reprodução, pois ela é tridimensional, penetrável a todos os sentidos da percepção humana, é uma porção do universo que preserva as qualidades do todo.

O lugar arquitetural materializa-se somente a partir de uma idéia que se permite corporificar-se como matéria espacial penetrável aos seres existentes. Ela é moldada a partir de frações do real e o seu resultado é, no entanto, uma representação. A Arquitetura, em sua tridimensionalidade, é arte de realidade estilizada e não realidade pura e para podermos desfrutá-la plenamente temos de nos deslocarmos até ela e a penetrarmos. Como as montanhas, as ilhas, os países distantes, a Arquitetura não vem até nós porque encontra-se fixa ao entorno não-arquitetural. Essa fixidez ao entorno colabora para desnaturá-la de sua condição de representação, aumentando a ilusão de que ela é muito mais realidade do que qualquer outra representação que se configure como objeto em plena condição de mobilidade.

A Arquitetura possui a capacidade de representação insuperada até pelos mais avançados meios tecnológicos, pois a representação arquitetônica é a única que cria espaços cartesianos onde a ação e percepção do indivíduo se dá naturalmente e de forma simultânea.

A representação da Arquitetura por meio de imagens nunca foi o bastante para usufruirmos de toda sua plenitude espacial, no entanto nunca deixamos de representá-la por meio da fotografia, da pintura, do cinema, porque nas representações da Arquitetura por estes outros gêneros artísticos é suficiente a satisfação visual, pois a visão é “o sentido que mais contribui para a síntese arquitetural” (4) em qualquer nível de representação. Enganada pela falsa tridimensionalidade das representações bidimensionais, a visão satisfaz-se com uma representação de segunda ordem como se fosse de primeira.

As fotos, as pinturas, os filmes e outros objetos artísticos representam aspectos da realidade, representam, inclusive, a Arquitetura e trazem ela até nós. Se estamos parcialmente impossibilitados de estarmos nos lugares arquiteturais estes objetos artísticos cumprem o papel de comunicar a existência daquilo que não podemos ver em sua plenitude. Para comunicar esses fenômenos afastados são produzidos os segundos, terceiros e outros tantos níveis de representação da primeira representação (real).

A reprodutibilidade dessas representações foi facilitada pela indústria cultural, da qual a Fotografia e o Cinema são exemplos consagrados. Estes são considerados como formas de representação mecânica do real, pois seu processo de geração de imagens provém de uma máquina, a câmera fotográfica, que são os olhos do artista e do observador ao mesmo tempo. Como formas de representação parcial, apresentam a Arquitetura em falsa tridimensionalidade, ou em bidimensionalidade ilusionista.

“Os recursos de representação, apesar de não ofereceram a coisa em si, são meios que ainda abrigam suficiente informação para que o original se faça conhecer em sua identidade estética” (5), por este motivo o Cinema e a Fotografia são tão utilizados para a fixação e divulgação de lugares arquiteturais. Por isso é mister do arquiteto executar cenários que sejam lugares arquiteturais que quando reproduzidos na tela ainda preservem a identidade estética de sua concepção original, e isso é o suficiente, mesmo que, na tela, o lugar arquitetural não esteja mais em sua palpabilidade material, em sua plenitude tridimensional, tenha perdido a simultaneidade entre a ação e percepção, que não são, afinal, condições inapeláveis de existência no real. Nessas condições o lugar arquitetônico representado no Cinema terá ganho qualidades outras que por muito tempo buscou.


Categorias de representação nos lu
gares cinematográficos

Diferente da Arquitetura, que é arte de realidade, no Cinema as representações acontecem em dois níveis, pelo menos, quais sejam o da primeira representação e da segunda representação.

A primeira representação no Cinema é o set, que é o lugar das filmagens. É nesse momento que o Cinema é arte de realidade tanto quanto a Arquitetura. É nesse nível de representação que acontece a interação mais íntima entre Arquitetura e Cinema, mantendo, ambas, a autonomia de gênero artístico.

Na primeira representação do Cinema, o real, não há fronteira estética, neste nível a Arquitetura manifesta-se integralmente. Na segunda representação do Cinema, na tela, há fronteira estética, neste nível a Arquitetura manifesta-se parcialmente. Fica confirmado, duplamente, que os lugares arquiteturais no Cinema estão na primeira representação das categorias de representação e nos lugares de cenas das categorias de realidade, neles os gêneros artísticos não são violados por nenhum desvio que fira sua natureza original. Os lugares arquiteturais projetados na tela do cine não são físicos, obviamente, mas são perfeitamente funcionais na medida em que cumprem a finalidade de fornecer ao observador uma ilusão satisfatória da realidade retratada. Desta feita, há de se admitir que os lugares arquiteturais no Cinema que também são lugares de projeções são de primeira representação enquanto o Cinema é de segunda.

Nada impede o arquiteto de ocupar-se de qualquer outra tarefa na equipe de filmagens, ele pode atuar, escrever, dirigir, mas procedendo assim ele se afasta do mister profissional de criar os lugares de cenas arquitetonicamente, tarefa para a qual ele está habilitado. O arquiteto pode ainda projetar os locais da segunda representação, ou seja, os cines. Ao projetá-los ele estará intervindo passivamente no processo cinematográfico, o contrário acontece ao projetar os espaços da primeira representação quando o arquiteto estará intervindo ativamente no processo cinematográfico.

Crise da representação

As categorias de representação que foram expostas aqui não é o único esquema aplicável às categorias de realidade. É uma convenção aceita por um grupo num certo momento de desenvolvimento do pensamento social. Este pensamento está ligado à história das técnicas, dos meios de reprodução de imagem e à percepção de realidade do indivíduo e da sociedade no momento em que foi formulado. Por este motivo está sujeito a modificar-se por reinterpretações que o adequem às circunstâncias.

O que se fez até aqui foi cumprir a ingrata tarefa de dar certa ordem ao cosmo do limite da nossa percepção. É preciso considerar que não há ponto fixo no espaço e que foram as teorias da física que deram novo sentido à compreensão do espaço onde há “somente a inércia do instante real que dá forma ao presente vivo. Uma duração psicológica sem a qual não existiria qualquer apreensão do mundo, qualquer paisagem mundana” (6).

A realidade tornada permeável pela representação, a redefinição filosófica e científica das noções de tempo e espaço que os relativizaram, levaram à presente crise de representação que nem a Arquitetura nem o Cinema conseguem dar respostas satisfatórias. A crise no sistema de representação é um fato que, em teoria, foi antecipado em muitos anos e previu o surgimento de um local que é, ao mesmo tempo, de ação e de percepção simultâneas sem ser um lugar arquitetural tradicional e que, eventualmente, o substituiria.

Somente com o aparecimento da tela do computador interativa, que ao mesmo tempo é representação e lugar de ação, e mais, com velocidade de transmissão que permite a simultaneidade, é que pudemos vislumbrar, a partir de um mero desenvolvimento tecnológico, o possível surgimento de uma nova matéria para um novo gênero artístico que supere as categorias de representação conhecidas e que impossibilite “qualquer distinção normativa entre o real e o simulado” (7).

Tocado pelo advento da Fotografia e do Cinema, Coutinho contemplou “a propósito do futuro incluo a possibilidade da tecnologia inventar nova matéria para a formação de outro gênero artístico” (8). Com o incremento recente da velocidade das comunicações e do aparecimento de um mundo em redes digitais que reduziu distâncias e reconfigurou o espaço geográfico conhecido, tivemos mais claramente a noção de simultaneidade na percepção das representações. Arquitetura e Cinema nos dão possibilidades de apreender a realidade de uma forma bastante ampliada, são, entre os gêneros artísticos ditos clássicos, os únicos que permitem uma percepção espaço-temporal simultânea da realidade que eles representam. Mas as suas possibilidades de representação são limitadas pela incapacidade desta em não ser nada mais do que uma redução que oculta e revela segundo a vontade do autor, segundo as limitações da técnica de expressão e pela capacidade do observador. A representação é uma condicionante indissociável do fazer artístico e é geradora de outra natureza produzida pelo artista, ela nos atinge pelo prazer estético e não pelo pela racionalidade científica.

Se todos os gêneros artísticos são meras técnicas de representação mais ou menos próximas da realidade, todas elas apresentando áreas de sombra que ocultam do olhar a visão da totalidade e, sendo esta ocultação um fator comum a todos os gêneros, em qualquer nível de representação, pode-se coloca-la em evidência e trabalhar somente com as variáveis. Para superar a crise da representação foi dada especial atenção aos gêneros que permitem uma recepção simultânea da realidade, ver “quase tudo” ao mesmo tempo. Enquanto a interface dos computadores não for alçada à categoria de gênero artístico, se todos os gêneros mais ocultam o real do que revelam, a Arquitetura e o Cinema sendo os que mais revelam, fica estabelecida a relação funcionalista entre estes gêneros, pois são os que mais satisfazem a necessidade de representar o real.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

- Claudio Cruz.

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NOTAS:

(1) Resumo de Arquitetura e Cinema, a primeira parte do trabalho final de graduação intitulado Projeto de Arquitetura Cênica para o curta metragem Vitrais. Cláudio Cruz. Recife UFPE, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, 1998.

(2) XAVIER, Ismail, 1996.

(3) COUTINHO, Evaldo. O Espaço da Arquitetura. Recife: UFPE, 1970. p. 158.

(4) VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. Rio de Janeiro. Ed 34, 1993. p. 60.

(5) VIRILIO, Op. Cit, p. 89.

(6) COUTINHO, Evaldo. Entre a Imagem e o Espaço. Diário de Pernambuco, Recife 18-25 mar. 1988. Panorama Literário, p. B6.

(7) Walter Benjamim: a exemplo do cinema, a arquitetura fornece matéria para uma recepção coletiva simultânea. Citado em VIRILIO, Op. Cit.

(8) COUTINHO, Evaldo. Entre a Imagem e o Espaço. Diário de Pernambuco, Recife 18-25 mar. 1988. Panorama Literário, p. B6.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. Arquitetura e Cinema: relação funcional. Heliográfica, online, Recife. Novembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Recife pós-industrial (1)



O Recife é uma cidade que está estreitamente ligada ao povoamento e ao desenvolvimento socioeconômico e cultural das Américas e, mais particularmente, do Brasil. Nestes quase cinco séculos de sua existência, ela passou por diversas transformações que marcaram profundamente sua fisionomia e mudaram os hábitos citadinos. Nascida no ciclo econômico da cana-de-açúcar, as transformações mais significativas foram aquelas determinadas pelo processo, ainda que periférico e, por isso mesmo tardio, de industrialização do país, fato que marcou não apenas o Recife, mas também outras cidades brasileiras e o Brasil no século 20.
O município chegou ao século 21 com as características de uma sociedade pós-industrial e, diante dessa nova realidade, seus problemas urbanos solicitaram outras posturas dos gestores municipais, mais adequadas às questões a serem enfrentadas. A gestão urbana de uma cidade como o Recife possui mais semelhanças com a de uma cidade como Baltimore (EUA) do que com Ipojuca (PE) distante apenas 50 Km, embora as conexões com esta última sejam mais intensas do que com a cidade norteamericana. As regiões metropolitanas brasileiras, dentre elas a do Recife, que possui 14 municípios e 3,65 milhões de habitantes, foram criadas nos anos de 1970 e tornaram-se cada vez mais heterogêneas, consequentemente, inviabilizou-se a criação de um sistema de gestão de funções públicas de interesse comum. Talvez tenha naufragado neste pormenor significativo o mecanismo legal de uma administração unificada das RM´s, cada município faz por si, solução que poderia ser caótico, parece ser a mais adequada.
O Recife é uma cidade pós-industrial, sua hinterland é industrial. A cidade industrial é aquela que desenvolve prioritariamente as atividades do setor Secundário da economia. A cidade pós-industrial é, essencialmente, uma prestadora de serviços, nela, desenvolvem-se as atividades do setor Terciário da economia. Tais cidades constituem-se mais como locais de consumo do que como locais de produção de bens. No Recife o setor de manufaturas, que emprega cada dia menos pessoas, migrou ou estabeleceu-se alhures, em localidades específicas, agrárias ou semi-agrárias, entretanto, próximas às vias de comunicação e de transporte.
Estas vias distribuem a produção industrial na região e para fora do país, cumprindo a sua função mercantil. Por volta da década de 80, grande parte da atividade do Porto do Recife começou a ser transferida para o novo terminal marítimo de Suape, distante cerca de 40 km, até então uma pacata vila de pescadores no litoral sul de Pernambuco, que em pouco tempo transformou-se num complexo industrial-portuário.
Cidade de origem e tradição portuária, o Recife teve de adaptar-se a esta situação que se impunha quase incondicionalmente, o fato de que a capacidade de movimentação de carga e a capacidade de atracar navios de grande porte tornou-se inviável na maior extensão do seu cais. A cidade inteira e, particularmente, o Bairro do Recife, sentiu os efeitos destas mudanças. Procurando adaptar-se às novas conjecturas, desde então, o Bairro passou a desenvolver projetos que invariavelmente apresentam o prefixo RE: revitalização, renovação, reconsolidação, reconstrução, requalificação, entre outros. Tudo isso nada mais é do que uma única RE: o redirecionamento de sua atividade econômico-produtiva rumo a um modelo econômico de cidade pós-industrial. A sintonia com este modelo permitirá auferir à urbanidade de toda a cidade, e não apenas ao bairro do Recife, os ganhos que ela necessita para sua sustentabilidade.
No Bairro do Recife surgiram várias iniciativas, públicas e privadas, voltadas às atividades Terciárias da economia. Atendendo estas iniciativas foi traçado um plano que permitisse lançar as bases que tornariam o local atrativo a investimentos. Este aporte de capital é o que tornou possível a readequação dos edifícios e dos espaços livres. Depois de 10 anos de implantado o Plano de Preservação do Bairro do Recife, pode-se afirmar que estas iniciativas alcançaram algum êxito e de certa forma preservaram o ambiente natural.
Não apenas no Recife, mas em vários lugares do mundo tem sido assim a história de projetos de recuperação das antigas cidades industriais, com seus prédios e bairros deteriorados: aumento da diversidade, o território formando uma base para um mix de atividades que enfatizam a idéia de rede. Locais criados sob essa perspectiva têm chances de encontrar um ponto de equilíbrio e voltar a ser saudáveis, permitindo que mais pessoas os freqüentem e, acima de tudo, queiram trabalhar e viver ali.
LEGENDA DA FOTO:
- Recife, vista aérea. Autor não identificado. Divulgação.
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NOTA:
(1) Publicado originalmente no Arquitetura Brasil em 11 de outubro de 2002.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Recife pós-industrial. Heliográfica, online, Recife. Outubro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Violência e Arquitetura (1)


O crescente índice de violência urbana gerou, na sociedade atual, uma demanda desenfreada por equipamentos, dispositivos e técnicas que tenham a finalidade de assegurar a integridade da pessoa e da propriedade. Não só os hábitos corriqueiros refletem esse clima de insegurança, a forma das habitações e da própria cidade também foram alteradas em função desta realidade já marcada pela ancestral necessidade de abrigo e segurança indispensáveis ao bem-estar do homem.

Segurança não é uma preocupação exclusiva da sociedade hodierna, altamente urbanizada e socialmente injusta. Ao contrário, a história demonstra que desde a antigüidade, em sociedades predominantemente agrárias e socialmente mais justas que a nossa há exemplos que ilustram a preocupação com a segurança das habitações e das estruturas citadinas, afinal, estes deveriam ser lugares seguros por excelência por possuírem as características que os distinguem dos primevos abrigos que antes protegiam os homens das intempéries, das feras e do próprio homem. Vale ressaltar que as cidades muradas, os castelos com torres e passadiços, igrejas barrocas com seteiras, fortalezas na costa, todos estes são programas e detalhes construtivos que consideravam tanto a defesa quanto o ataque.

Hoje guaritas, cercas e muros são equipamentos amplamente utilizados nas habitações. A população discute a utilização de câmaras de espia nas vias públicas das cidades, mas a questão é: será que tais equipamentos cumprem sua função primordial de resguardar vidas e patrimônios? A julgar pelas estatísticas a resposta pode ser negativa. Mecanismos dessa natureza criam apenas desconfiança mútua e isolamento, promovem a segregação social e extinguem as práticas comunitárias integradoras.
A barreira física e a vigilância eletrônica temperadas de impessoalidade desestimulam a vida coletiva que pode ser o mais eficaz antídoto contra a violência. É a falta de integração entre os cidadãos o que acaba por servir de estímulo à geração de mais violência. Num ciclo de retroalimentação intramuros constata-se a violência doméstica despontando nas estatísticas a cada dia com maior freqüência. O fato é preocupante, pois atinge principalmente crianças e mulheres em seus lares, um espaço tradicionalmente tido como seguro, se comparado às ruas.
As precárias condições de vida - falta de habitação e péssima distribuição de renda-, são a principal causa dos conflitos sociais que podem transformar o cidadão em um inimigo potencial. Neste estado que podemos considerar emergencial não há muros nem guaritas que protejam uma sociedade que tornou-se refém de si mesma. Para superá-lo faz-se necessário criar espaços saudáveis e restaurar as áreas degradas das cidades, além de eliminar bolsões de pobreza e investir em infra-estrutura urbana a fim de resgatar e fomentar o convívio grupal. A adoção dessas medidas pode reverter o crescente número de casos de violência estatisticamente registrados.
A sociedade pacífica não é uma visão utópica, mas uma realidade com a qual os arquitetos podem contribuir para a sua concretização criando espaços saudáveis que promovam a integração social e consequentemente a superação dos conflitos. São vários os exemplos de projetos imbuídos desta preocupação, o que é louvável. Também são fartos os exemplos de uma arquitetura que pode alimentar a violência, o que é lamentável. Oxalá prevaleça a primeira sobre a segunda.


LEGENDA DA FOTO:
- Muro de Berlim. Autor não identificado. Divulgação.
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NOTA:
(1) Publicado originalmente no
Arquitetura Brasil em 09 de setembro de 2002.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Violência e Arquitetura. Heliográfica, online, Recife. Outubro/2007. Disponível: heliografica.blogspot.com Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo (1)

Quando encerrou-se o XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos, estava dado um importante passo em direção à tão esperada organização autônoma profissional. Naquele sábado, dia 03 de maio de 2003, a plenária final aprovou, por unanimidade, a Declaração do Rio, o principal documento do Congresso, que trata da criação do Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo. O documento foi apresentado pelos arquitetos João Filgueiras Lima, o Lelé (Patrono do XVII CBA); Severiano Mário Porto, Miguel Alves Pereira, Joaquim Guedes, Jaime Zettel e Haroldo Pinheiro (Presidente Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB).


Uma profissão regulamentada possui legislação e normas de funcionamento. No Brasil, para que as leis que tratam do exercício profissional fossem aplicadas, criaram-se os Conselhos Profissionais. O que reúne engenheiros, arquitetos e agrônomos foi criado em 1933. Além de exercer atividade de fiscalização do exercício profissional, também faz parte das atribuições dos conselhos o estímulo à política de valorização profissional. A criação de um exclusivo para os arquitetos é um passo neste sentido e que permitirá à sociedade uma melhor interação com esses profissionais e com os serviços que eles oferecem.

A criação de um conselho desligado do sistema Confea/Crea’s, que hoje não reúne apenas engenheiros e agrônomos, mas uma centena de títulos profissionais, era um sonho acalentado por sucessivas gerações de arquitetos e sua criação sempre foi uma questão polêmica. A iniciativa vem adequar o Confea/Crea’s a uma nova realidade, bem diversa daquela que havia no Brasil de 1933 e abre a possibilidade para que engenheiros e agrônomos também tenham seus próprios Conselhos.

A criação através do Anteprojeto de Lei para a Regulamentação da Arquitetura e Urbanismo no Brasil, foi uma proposta lançada pelas cinco entidades nacionais de arquitetos (IAB, FNA, AsBEA, ABEA e ABAP), assunto da quase totalidade das mesas-redondas e conferências do XVII CBA e recebeu o apoio público dos seguintes arquitetos: Carlos Fayet, Carlos Fernando Andrade (Presidente de Honra do XVII CBA), Clóvis Ilgenfritz da Silva, Dirceu Carneiro, Jaime Lerner (Presidente da UIA), Mário António do Rosário (Presidente do CIALP), Marcos Konder Netto, Nabil Bonduki, Nestor Goulart dos Reis Filho (primeiro signatário do abaixo-assinado de apoio), Oscar Niemeyer, Pasqualino Magnavita, Paulo Mendes da Rocha, Rosa Kliass, Roberto Segre, Ruy Ohtake e de representantes da classe estudantil.

O Arquitetura Brasil reproduziu um artigo intitulado Arquitetura, atribuição de arquiteto, de Haroldo Pinheiro, elaborado por solicitação da revista Construção OESP - edição de fevereiro/2003, em que o autor trata de questões relativas à permanência ou não dos arquitetos no sistema Confea/Crea’s. Antes que pareça uma adesão à causa da emancipação dos arquitetos, os artigos publicados pelo Arquitetura Brasil refletem a opinião dos autores. Em três oportunidades (13 de maio, em 04 e 05 de junho), o Arquitetura Brasil procurou contactar, por e-mail, Wilson Lang, Presidente do Confea/Crea’s, solicitando que opinasse sobre a Declaração do Rio. O Arquitetura Brasil foi informado que o Conselho ainda não tomou conhecimento da referida declaração e só vai manifestar-se após este conhecimento formal. Acrescentou que já se manifestou sobre este assunto em diversas oportunidades e sempre com o mesmo teor. Inclusive no discurso de abertura do Congresso [XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos]. O mesmo Wilson Lang, em declaração publicada no website da Agência Senado, disse mais: a separação irá enfraquecer as categorias profissionais. E que engenharia e arquitetura são profissões interligadas e fazem parte de uma mesma estrutura orgânica de trabalho, razão pela qual não vê com bons olhos a separação.

Enquanto o Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo não se torna uma realidade, importantes passos continuam sendo dados em favor de sua concretização. O mais recente aconteceu no último dia 12 de maio [de 2004], quando a Comissão de Assuntos Sociais (CAS), do Senado Federal, em Brasília (DF), examinou em audiência pública a viabilidade da regulamentação do exercício da arquitetura e do urbanismo, e a criação do Conselho Federal da classe e dos respectivos conselhos regionais, como prevê o projeto de lei do senador José Sarney (PMDB-AP), que tramita em caráter terminativo no colegiado. Estiveram presentes à audiência vários senadores, dentre eles, o relator do projeto (PLS 347/03), senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG). Vários especialistas na matéria também estiveram presentes e manifestaram apoio à criação de órgãos próprios de fiscalização profissional de arquitetura e urbanismo.

Subjacente a todas as preocupações e dúvidas manifestadas pelos envolvidos nas discussões há a certeza de que o surgimento do Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo é, sobretudo, uma perda de receita para o Confea/Crea’s. E mais, longe de ser uma reivindicação isolada dos arquitetos é uma tendência que pode ser seguida pelas diversas categorias profissionais agrupadas no sistema, a maioria deles sem qualquer interesse em comum. Se a criação do Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo for bem sucedida, há a possibilidade de que não tarde o momento em que a que outras categorias façam o mesmo, criando seus próprios conselhos autônomos, desvinculados do Confea/Crea’s. A concretização dessa hipótese levaria a uma perda de receitas futuras e a própria extinção do sistema. A preocupação de Lang é pela sobrevivência do sistema; como seu presidente deve, naturalmente, preservá-lo.

O Projeto de Lei está disponível online, foi elaborado com a consultoria jurídica de Miguel Reale Júnior, concretiza os compromissos assumidos no manifesto "Aos Arquitetos e à Sociedade Brasileira", de 12 de maio de 1999, reafirmado em São Paulo em 11 de dezembro de 2002 e propõe reordenar o exercício da Arquitetura e Urbanismo, adaptando-o aos princípios da nova Constituição Brasileira. O mesmo projeto promove uma releitura dos instrumentos legais existentes e se articula a um Código de Responsabilidade Profissional, a um Código de Ética, bem como as demais normas constitucionais e infraconstitucionais brasileiras.


LEGENDA DA FOTO:
- Haroldo Pinheiro. Presidente IAB-DN, na solenidade de abertura do XVII CBA no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Foto Gilberto Belleza. Divulgação.

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NOTA:

(1) Matéria editada a partir de duas que foram publicadas originalmente no Arquitetura Brasil; a primeira com o título Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo, do dia 13 de junho de 2003; a segunda com o título Novamente sobre o Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo, do dia 28 de maio de 2004.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo. Heliográfica, online, Recife. Outubro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Surpresa e Ousadia (1)

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Ruy Ohtake é um daqueles profissionais que não passam despercebidos. Polêmico, ele está, aos poucos, modificando a paisagem de São Paulo, com projetos multicoloridos e formas extravagantes. Sua produção arquitetônica começou em 1960, assim que concluiu a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Atualmente, além dos projetos arquitetônicos, ele também cria conjuntos de móveis (2).

Nessa entrevista Ohtake elege Oscar Niemeyer como o mais importante arquiteto do mundo, fala sobre suas obras mais recentes e tece comentários sobre a atual produção arquitetônica nacional.


Arquitetura Brasil: O senhor é conhecido como um arquiteto que explora a forma curva. Essa afirmação indica que reside aí a ousadia expressiva da arquitetura brasileira?

Ruy Ohtake: Quando provoca surpresa, quando produz leveza, quando estimula emoção, a curva é um dos elementos que podem caracterizar a arquitetura brasileira.

ArqBr: Ultimamente alguns de seus projetos lembram frutos. As semelhanças são conscientes? Fale a respeito.

RO: A minha arquitetura é, por vezes, orgânica. E talvez isso leve as pessoas a ligarem à natureza: as curvas da montanha, as ondas o mar, o peixe da praia, etc.


ArqBr: Comente sua produção mais recente, principalmente o Hotel Unique, o Ohtake Cultural e o mobiliário.

RO: O Ohtake Cultural é uma proposta contemporânea para a uma cidade cosmopolita como São Paulo. Lá, os escritórios – seus usuários – convivem com os espaços de cultura: áreas de exposições, ateliês, teatro; com espaços de lazer: restaurante, livraria, loja. O bairro participa do complexo, concluído há apenas 10 meses, as propostas começam a se efetivar. A arquitetura abre a região para a contemporaneidade.
O Hotel Unique tem a longa curva em arco invertido, possibilitando dois grandes espaços laterais, com 25 metros de altura: são os dois acessos. São dois pontos fortes do projeto, para uma grande cidade, para uma metrópole. Portanto, um hotel urbano. Os apartamentos das laterais são bastante curiosos, porque fiz o piso subir em curva, acompanhando o desenho da fachada até encostar no forro. Espaço interno surpreendente. Os corredores dos andares são curvas que alcançam as janelas, trazendo uma bonita luz exterior. Espaço inusitado.
Tenho projetado alguns conjuntos de móveis. Desenhei um móvel com 16 metros de comprimento, e que ocupa adequadamente o saguão de um hotel, em Brasília. Procuro trabalhar com as características próprias de cada material. Inventividade que o concreto permite, como fiz em várias estantes, escadas, peitoris e mesas. A leveza do metal, a partir da combinação de calandras: o aparador Filippelli, o sofá Três Ondas, a mesa Origami. A transparência colorida do vidro como superfície: várias estantes, a mesa ecológica.

ArqBr: Em trabalho recente, Glauco Campello afirmou que há na arquitetura brasileira um eixo constante e unificador cujos atributos são singeleza, concisão e clareza. Onde esses atributos se manifestam na sua obra?

RO: Além de atributos de singeleza, concisão e clareza, referidos por Glauco, competente e generoso arquiteto, acrescento os de surpresa e ousadia.


ArqBr: A arquitetura produzida no Brasil beneficia-se de uma crítica parcial ou mesmo inexistente?

RO: A arquitetura deve evoluir com crítica ou sem crítica. Melhor com boa crítica, com boas publicações e boas escolas.

ArqBr: Há um saudosismo pela arquitetura moderna brasileira e um certo desprezo pela produção recente, qual a sua opinião a respeito?

RO: A arquitetura, com sua trajetória passada ou recente, pode nos indicar alguns caminhos. O resto é com a proposta de cada arquiteto.

ArqBr: Aponte os projetos e arquitetos brasileiros mais representativos, atualmente. Existe alguma tendência ou corrente arquitetônica iniciada ou desenvolvida no país recentemente?

RO: Oscar Niemeyer é o mais importante arquiteto do mundo. Sua arte será referência ao longo dos próximos séculos. Respeito muito Lucio Costa, uma primorosa sabedoria. Gosto bastante de Lelé e de Lina Bo Bardi. Acho importante Paulo Mendes da Rocha. A tendência que eu gosto é a de dar continuidade à arquitetura brasileira.

ArqBr: Como vê a situação da arquitetura brasileira no cenário internacional?

RO: Niemeyer conquistou o reconhecimento mundial, e abriu espaço para a arquitetura brasileira, que tem projetos interessantes. Merece maior espaço em publicações internacionais, em certames e também congressos.

ArqBr: O que distingue as idéias aparentemente contrárias do "nivelamento das identidades e tradições locais com a globalização" e "um mix de culturas presente na América e no Brasil", já que ambas, na essência, diluem a idéia de nacionalidade, tão cara aos brasileiros?

RO: A cultura regional passa a ser importante quando atinge patamar universal. No cinema atual, são exemplos: Central do Brasil, de Walter Sales e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Katia Lund. A América Latina tem desafios muito semelhantes, desde México e Cuba, desde Colômbia e Brasil. Cada país, cada região deve buscar suas propostas, que se forem da essência local em nível universal, ótimo. Se for mera expressão internacional, uma pena. Não se deve confundir diluição, que é globalização, com semelhança, que é a luta comum.

ArqBr: Na sua opinião, qual o papel do arquiteto nas causas que envolvem as classes menos favorecidas?

RO: Quando elaborei o projeto O Menino e O Mar, com Ruth Escobar, pensei na dignidade e na beleza para os espaços que abrigam 300 crianças de famílias muito pobres do litoral norte de São Paulo, em um bonito programa de educação. A arquitetura pode ser feita com materiais simples. Não se pode é abrir mão da criatividade e da plástica. Com dignidade. E a componente cidadania deve fazer parte da formação e da postura de todos nós.


LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)

- Ruy Ohtake. Gustavo Lourenção, Quem. Divulgação.

- Ohtake Cultural. São Paulo (SP). Ruy Ohtake Arquitetura e Urbanismo. Divulgação.

- Hotel Unique. São Paulo (SP). Divulgação.

- Pavilhão da Feira Internacional de Osaka, Japão, 1970. Croquis. Paulo Mendes da Rocha. Colaboração de Flávio Motta, Júlio Katinski, Rui Ohtake e Jorge Caron.

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NOTAS:

(1) Entrevista concedida a Cláudio Cruz e Vanessa Lins. Publicado originalmente no Arquitetura Brasil, em 11 de setembro de 2002.

(2) Sobre Ruy Ohtake consultar:
Ruy Ohtake Arquiteturas Móveis. Julio Katinsky, Olivio Tavares de Araújo. São Paulo: Brastemp, 1996.
La Arquitectura de Ruy Ohtake. Madrid: Celeste Editorial, 1994.
SEGRE, Roberto. Ruy Ohtake: contemporaneidade da arquitetura brasileira. São Paulo: ABCP, 1999.


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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. Surpresa e Ousadia. Heliográfica, online, Recife. Outubro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

São Paulo 450 Anos (1)

Não é em São Paulo que se deve procurar uma contribuição prática válida para o urbanismo contemporâneo (...). Seria possível consolar-se com isso se a falta de criatividade nesse setor ao menos tivesse contribuído para proteger os vestígios do passado, mas não aconteceu nada disso, muito pelo contrário: em parte alguma a fúria destrutiva foi exercida com maior constância (...) (2).



Quais as imagens que se tem, hoje, da cidade de São Paulo quando ela completa 450 anos? Imagem não é tudo mas é o bastante quando se sabe que do passado só elas restaram. A cidade viveu um excepcional crescimento econômico, demográfico e profundas mudanças urbanísticas em sua história, as imagens de São Paulo hoje são inúmeras e parciais que não mostram nada além de pontos focais, diminutos diante de sua complexidade. Uma imagem que a mostre inteira só é possível em escala regional, pois esta é a única megalópole brasileira, com mais de dez milhões de habitantes.
São mais de quatro séculos contados desde o longínquo dia 25 de janeiro de 1554 quando os padres jesuítas chegaram e se estabeleceram no planalto onde iniciaram as atividades de catequese dos índios. Nesse dia a igreja comemora a conversão do Apóstolo Paulo ao cristianismo, a cidade homenageia um convertido, em São Paulo todos são paulistas.
O Colégio Jesuíta de Piratininga começou a funcionar em 1556, era uma construção em taipa ao redor do qual iniciou-se a edificação das primeiras casas que deram origem à cidade, elevada a vila já em 1560. São Paulo possuiu desde o seu início a característica do urbanismo português de ocupar os terrenos altos, mais seguros, secos, salubres e deixar as partes baixas desocupadas, como são exemplos semelhantes Olinda, Salvador e o Rio de Janeiro. Da primeira construção até o século 19, a cidade permaneceu isolada, no meio do caminho para o sertão brasileiro, durante todos esses séculos, a "língua geral", de base tupi-guarani, era mais usada em São Paulo do que o português. Era uma parada no caminho dos bandeirantes e demais viajantes que deixavam o litoral em busca do sertão brasileiro, foi neste caminho de viajantes que D. Pedro I decidiu pela independência do Brasil, em 1822.

Em 1711 a vila foi elevada à categoria de cidade, ainda que ela não apresentasse significativo progresso econômico e a população, em algumas ocasiões até decresceu. Em 1827 o a cidade foi escolhida para receber a academia de direito, o que lhe deu importância cultural pela primeira vez. À margem dos ciclos econômicos da colônia (agricultura e mineração), São Paulo só veio a ter importância a partir do fim do século 19, com os capitais acumulados na lavoura do café e com a posterior industrialização. Nessa época, o centro histórico, situado nas cercanias da elevação próxima à confluência dos rios Anhangabaú e Tamanduateí, onde a cidade surgiu, ficou pequeno devido ao crescimento demográfico.

Em pouco tempo tornou-se a maior cidade do interior do Brasil, uma mudança na ocupação do território brasileiro que inverteu a tendência de ocupar apenas o litoral e deixar o interior como terra icógnita; um marco na passagem da condição de país agrícola para país industrializado, de população predominantemente rural para população urbana. Seu salto econômico foi possibilitado pela atividade cafeeira cuja exportação chegou a representar mais de 70% do total brasileiro. Depois de 1930, a economia cafeeira deu lugar à industria como gerador de riquezas. Planos e melhorias urbanas sucederam-se. Novos bairros surgiram, numa estrutura urbana desarticulada, em várias ocasiões comparada a uma colcha de retalhos. Novas vias foram abertas para desafogar um trânsito que não deixou nunca de pedir cada vez mais áreas de circulação.



A cidade dos brasileiros convertidos abriga desde o final do século 19 uma grande quantidade de imigrantes que lhe deu feição própria, notadamente italianos e japoneses, mas há inúmeras outras nacionalidades, como sírios, libaneses e mais recentemente coreanos e latino-americanos de várias procedências. Considerando-se a migração interna, a quantidade de nordestinos foi a mais significativa, diz-se que São Paulo é a maior cidade japonesa fora do Japão e a maior cidade nordestina fora do Nordeste.
É sobretudo uma cidade de grandes contrastes, onde convivem lado a lado o seu progresso e sua incapacidade de superar os próprios problemas. Onde a iniciativa privada foi a promotora do desenvolvimento e o Estado ocupou funções secundárias. Nesta posição, as iniciativas públicas sempre foram insuficientes para prever e remediar os problemas urbanos e a iniciativa privada não assumiu esse ônus.
No século XX São Paulo ganhou e perdeu importância econômica, hoje seu forte está no setor de serviços, sua produção industrial corresponde a 9,4% da produção do país, é a capital de um estado que é hoje o maior pólo de negócios da América Latina, concentrando 1/3 de todos os investimentos privados realizados no território nacional, onde se produz 34% do PIB industrial brasileiro, segundo dados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp. As estatísticas da atividade econômica são ainda mais impressionantes quando se constata que o dinheiro abundante não soube, ou não quis, comprar uma boa arquitetura e urbanismo. Neste quesito, São Paulo é um exemplo a ser evitado.

Nesta data comemorativa, em que o Presidente da República foi à cidade inaugurar uma fonte multimídia no parque Ibirapuera, é de se lamentar que viaje tanto para tão pouco, a fonte é tão simbólica como o Independência ou Morte que só Pedro Américo viu e retratou em 1888. A cidade construída sem bom senso, não teve a felicidade de receber de presente nada que lhe fosse mais útil do que uma fonte banal quando ainda lhe falta um plano urbanístico ou uma obra realmente importante, de interesse majoritário para a sua população. Entretanto, não se deixa de comemorar nem de compartilhar com os paulistanos a legítima esperança de que os problemas que desqualificam São Paulo possam ser superados a tempo para usufruto das próximas gerações.


LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)
- Planta da Imperial Cidade de São Paulo pelo Capitão de Engenheiros Rufino J. Felizardo e Costa. 1810.
- Vista aérea de São Paulo. Foto Jefferson Pancieri.
- Avenida Sumaré. Gregório Gruber, 1989.
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NOTAS:
(1) Publicado originalmente em
Arquitetura Brasil, em 23 de janeiro de 2004.
(2) BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. Perspectiva, 1991. P. 333.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. São Paulo 450 Anos. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [formato dia/mês/ano].

sábado, 15 de setembro de 2007

Urbanização de favelas no Brasil (1)

O arrazamento de mocambos, favelas e cortiços está na consciência de todos e o resultado disso são já patentes. (2)



Em setembro de 2002 o Brasil participou da 8ª edição da Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza. Sob a curadoria das arquitetas Elisabete França e Glória Bayeux – convidadas pelo então presidente da Fundação Bienal de São Paulo, arquiteto Carlos Bratke – o pavilhão que representou o país no evento abordou um dos temas mais atuais da arquitetura nacional: a urbanização de favelas. É sobre o assunto que Elisabete França fala em entrevista.

Arquitetura Brasil: Na década de 40, o “arrazamento” dos aglomerados habitacionais de periferia – cortiços, favelas e palafitas - era a solução mais aceita para o controle das ocupações clandestinas. A partir de quando, efetivamente, as favelas brasileiras começaram a ser vistas como núcleos habitacionais definitivos, com dinâmica própria e perfeitamente passíveis de intervenções urbanísticas para o seu melhoramento?
Elisabete França: A sociedade brasileira sempre teve dificuldades para aceitar as ocupações “informais” que surgem nas cidades, pois são consideradas bolsões de pobreza, insalubridade, sujeira, perigo e cujos padrões estéticos fogem àqueles “aceitáveis”. Favelas, cortiços, palafitas, entre outras, são entendidas como áreas marginalizadas e não como alternativa de moradia para aquelas famílias que não têm acesso ao mercado formal de habitação e serviços públicos. A ocupação urbana brasileira vem repetindo a clássica fórmula “casa grande – senzala”, ou seja, os que têm acesso ao modelo habitacional regularmente constituído e aqueles que não têm, porém cuja proximidade de localização é que permite o funcionamento das redes econômicas que movem a cidade e o país.
Assim durante muito tempo, a demolição e destruição desses bolsões sempre foram a proposta mais adotada para a superação do “problema”. Como conseqüência da implantação de tal proposta, outros bolsões foram aparecendo em regiões cada vez mais distantes, porque a demolição e destruição das favelas não resultaram no desaparecimento daqueles que ali viviam e que necessariamente buscaram novas alternativas de moradia em outras áreas “informais”.
A década de 60 foi o grande momento da política de desfavelização, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Favelas eram removidas na sua totalidade, com a conseqüente transferência das famílias para os imensos conjuntos habitacionais implantados distantes das cidades. Época da construção do emblemático Conjunto Habitacional Cidade de Deus. Já na década de 80, com o fracasso do SFH/BNH, o avanço do processo de democratização do país, a participação crescente dos moradores nos processos decisórios relativos às questões da moradia, e uma série de outros fatores, consolidou-se, cada vez mais, a aceitação das “áreas informais” como alternativa habitacional para aqueles excluídos do mercado formal da habitação.
Felizmente nos dias atuais, a urbanização de favelas, a recuperação de cortiços nas áreas centrais e outras políticas públicas, que têm como objetivo central, a manutenção do morador no local e o reconhecimento do patrimônio construído pelas famílias, através de um grande esforço autônomo, à margem do patrocínio oficial, já é bastante mais bem aceita pela sociedade brasileira.

ArqBr: Até os anos 70, as políticas públicas visavam a relocação dos ocupantes das áreas “marginais” para conjuntos habitacionais construídos em localidades distantes dos centros. Em sua opinião, por que demorou-se tanto para perceber que o aproveitamento da estrutura já existente seria uma solução mais viável? De quem partiu a idéia de urbanizar favelas?

EF: A aceitação da solução “urbanização de favelas” pela sociedade brasileira ocorreu de forma gradativa e acompanhou o processo de democratização do país, embora não se trate ainda de um consenso. Os processos decisórios se tornaram mais democráticos, a população passou a participar de fóruns de decisão sobre o seu futuro e possibilidade de escolha de alternativas habitacionais, etc. A participação dos arquitetos e urbanistas foi decisiva neste caminho de aceitação destes novos padrões, quando estes passaram a atuar decisivamente nessa área. Creio que não existe um “autor” da idéia da urbanização de favelas, devemos entender como construção de um modelo de intervenção, alternativo aos padrões estabelecidos pelo SFH/BNH; porém as experiências do grupo do Carlos Nelson [Ferreira dos Santos], pessoalmente para mim, se constituíram em um ponto de partida na década de 80.

ArqBr: Após a urbanização de uma favela, há alguma mudança significativa nos hábitos da população? E a receptividade dos moradores da área? Qual a importância socialmente transformadora da iniciativa?
EF: A urbanização de uma favela representa uma melhoria significativa nas condições de vida da população que nela vive. Primeiro porque responde às necessidades básicas da comunidade (implantação de redes de infra-estrutura, sistema viário, etc); em seguida responde a necessidades não necessariamente básicas, porém de efeito diferenciado posto que pode reforçar os laços comunitários pré-existentes (implantação de ares de lazer, equipamentos comunitários, etc).
Conseqüentemente, resulta em uma mudança significativa nos hábitos da população. Esta passa a ser co-responsável pela manutenção das melhorias implantadas e como tal tem como obrigação incentivar a necessária mudança de hábitos culturalmente arraigados. Não é uma tarefa simples, porém costuma-se dizer que é a fase de transformação do morador das favelas em cidadão que responde pela construção de seu futuro, respondendo por direitos e deveres inerentes a essa nova condição.
ArqBr: Sabe-se que em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador iniciativas dessa natureza já foram feitas, conforme podemos apreciar na exposição. A Sra. tem alguma notícia de iniciativa semelhante no Recife e em outras cidades brasileiras?

EF: A urbanização de favelas é um processo que vem sendo adotado em várias cidades brasileiras. As experiências apresentadas na Bienal de Veneza sintetizam esse longo aprendizado e foram selecionadas por comporem um mosaico do que vem sendo realizado no país. Há uma série de grandes projetos em implantação ou já implantados em Belo Horizonte, Fortaleza, Vitória, Santo André, Diadema, entre outras cidades brasileiras.
No caso particular do Recife, há uma cultura profissional relacionada ao tema bastante avançada, ou seja, um grande número de profissionais dedicados à busca das melhores soluções para o trato das áreas informais. A cidade de Recife foi pioneira na proposição das zonas de interesse social, contemplando áreas de ocupação informal e segue buscando as melhores soluções para o tema.

ArqBr: Por menor que seja, há uma preocupação estética nos projetos dessa natureza e não há apenas preocupações relativas os aspectos funcionais da habitação e do espaço urbano. Especificamente neste caso, quais são os parâmetros que mediam as relações entre forma e função?

EF: O projeto de urbanização de favela não se diferencia de outros projetos em relação a menor ou maior preocupação estética. O processo de elaboração do projeto responde a uma problemática existente, para o qual se adota um partido de intervenção que resulta das necessidades apresentadas por um cliente coletivo. No projeto são observadas as dificuldades a serem enfrentadas, as necessidades a serem atendidas (em especial as mais imediatas, tais como, redes de infra-estrutura básica, sistema viário e serviços públicos), e as potencialidades a serem exploradas (sítio, áreas vazias, espaços comunitários reconhecidos pela comunidade, culturas locais, etc).
Este conjunto de informações será utilizado na elaboração do projeto, ao qual se somará a experiência profissional, o domínio de técnicas construtivas, a capacidade de proposição de materiais e equipamentos adequados e a capacidade criativa do arquiteto. Daí resulta um projeto que poderá ter maior ou menor preocupação estética, e que será o diferencial entre os vários projetos.
ArqBr: O tema da Bienal é NEXT (em português, próximo, porvir, futuro). Segundo o catálogo da mostra brasileira, ela é constituída por dois módulos: o primeiro módulo é uma leitura da realidade desses assentamentos; o segundo são exemplos de intervenções que caracterizam a atuação dos arquitetos. Nestes módulos estão expostas as situações pretéritas e presentes. Onde está o futuro (NEXT)?
EF: A mostra brasileira apresentou a situação das favelas antes e depois das intervenções, de modo a permitir ao visitante, a partir da comparação entre as duas realidades, constatar o upgrading resultante de um projeto dessa natureza. O futuro está na reflexão sobre o tema escolhido para representar o país, tema esse que sofreu certas resistências por parte de setores representativos dos setores cultural e arquitetônico, que preferiam ver a arquitetura brasileira “melhor” representada.
Temos um grande desafio pela frente nos próximos anos ou décadas - propor e implantar soluções para os milhões de brasileiros que não têm acesso à moradia e aos serviços básicos da cidade – esse é um dos grandes temas da arquitetura e do urbanismo. A exposição mostra que os arquitetos brasileiros sabem como fazer e o fazem bem; trata-se agora de ampliar a escala de intervenção para que abarque um conjunto significativo de áreas informais. Reproduzir por todo país a escala dos Projetos Favela-Bairro, Guarapiranga, Ribeira Azul/Alagados, entre outros. Esse é o futuro (NEXT) recomendável.
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LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)
- Programa de Saneamento Ambiental da Bacia de Guarapiranga. Secretaria de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras do Estado de São Paulo . Divulgação.
- Programa Favela Bairro. Prefeitura do Rio, Secretaria Municipal de Habitação. Divulgação.
- Programa Ribeira Azul. Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia. Divulgação.
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NOTAS:
(1) Entrevista concedida a Cláudio Cruz e Vanessa Lins. Publicado originalmente em Arquitetura Brasil, em 17 de janeiro de 2003.
(2) GOODWIN, Philip. Construção Brasileira, arquitetura moderna e antiga (ed.bilíngue). Nova York: The Museum of Modern Art, 1943. P. 96.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Urbanização de Favelas no Brasil. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

O Pritzker e seus agraciados (1)




A arquiteta Zaha Hadid (1950) recebeu na última segunda-feira, dia 31 de maio, o prêmio Pritzker 2004, tido como o mais importante da arquitetura mundial, em cerimônia realizada no auditório do Museu Hermitage, em São Petersburgo, Rússia.


Instituído pela Hyatt Foundation Thomas Pritzker, sediada em Los Angeles, Califórnia, EUA, a fundação começou a distribuir os prêmios em 1979, quando foi criada, sendo o primeiro agraciado o arquiteto americano Philip Cortelyou Johnson (1906-2005), notabilizado pelos óculos de aro grosso e como um dos ideólogos do International Style surgido nos anos de 1930 (os outros eram Alfred Barr Junior e Henry-Russell Hitchcock). Na sua longa carreira foi autor de inúmeras obras, entre elas e o AT&T Corporate Headquarters (em parceria com John Burgee), em Nova York, tido como o primeiro arranha-céu pós-moderno da história, construído entre 1978 e 1984, é reconhecido no skyline da cidade como aquele coroado por um enorme frontão interrompido. Em 1990, os japoneses adquiriram com dinheiro americano o imóvel que hoje se chama Sony Plaza. Miguel Forte (1915-2002) recordou em entrevista à revista Projeto Design (2) o encontro, nos anos de 1940, entre dele e Jacob Ruchti com Johnson em seu escritório de Nova York onde havia uma poltrona folheada a ouro em estilo renascentista francês, um objeto que estaria desde aquela época antecipando a composição do coroamento do edifício AT&T. Com a entrega do primeiro Pritzker a Johnson tornou-se difícil entender a justificativa da Fundação de premiar arquitetos que deram grande contribuição à arquitetura moderna.

Mas a Fundação surpreende, em 2003 o Pritzker foi entregue ao arquiteto dinamarquês Jørn Utzon (1918), cujo projeto da Casa de Ópera de Sidney o fez conhecido em todo o mundo. Utzon recebeu o prêmio em cerimônia realizada na Academia Real de Belas Artes de San Fernando, em Madri, Espanha, ocasião em que embolsou 100 mil dólares. Na lista dos agraciados está também o brasileiro Oscar Niemeyer (1907), que em 1988 dividiu o prêmio com o americano Gordon Bunshaft (1909-1990). Niemeyer e Utzon são arquitetos da periferia cultural do ocidente, o primeiro do mundo superdesenvolvido, o segundo do mundo subdesenvolvido, ambos serão sempre lembrados por terem integrado a arquitetura à paisagem e à cidade pelo seu valor e expressão escultórica.

A cada ano a cerimônia realiza-se em um país diferente e já foi entregue na Inglaterra, Japão, Itália, México, República Tcheca, França, Alemanha, Israel e, evidentemente, nos Estados Unidos, onde a importância que se dá à premiações é assunto de psicologia social. Embora a déia de premiar os que se destacam na sociedade não seja uma invenção americana, eles adotaram como se fosse uma instituição própria e para adquirir o caráter típico local foi superdimensionada, como fizeram com os edifícios de múltiplos pavimentos, o lixo ambiental e o cinema (que também não são invenções deles). Terra das patentes, o que é idéia original americana, promove notoriedade e mãos sujas, é a Calçada da Fama, onde figuras ilustres deixam suas marcas no cimento fresco. Essa devia ser a premiação para os arquitetos, muito mais pra eles do que para qualquer outra figura do star system. Na Calçada da Fama haveria a oportunidade primeira e única de alguns arquitetos porem a mão na massa.

Nos últimos anos a entrega do prêmio tornou-se absolutamente desinteressante. O anúncio, no início desse ano, que o prêmio seria concedido a Hadid e no Hermitage de São Petersburgo foi uma manobra com o objetivo de fazer o prêmio receber mais atenção do público reticente. Essa foi a primeira ocasião que o Hermitage serviu de palco para a entrega do Pritzker, tido como o Nobel (ou o Oscar?) da Arquitetura. O Hermitage de São Petersburgo, como a antiga Mesopotâmia, região de onde veio Hadid, é também um santuário de relíquias; a diferença é que as da Mesopotâmia testemunham o nascimento da civilização enquanto as de São Petersburgo revelam apenas o apreço pelo empilhamento que se não é o que levou a civilização ao seu ocaso é o que a fez tão feia. Depois da queda do regime comunista, a cidade imperial e seu patrimônio tornaram-se uma referência simbólica da nova classe que ascendeu ao poder no país, uma espécie de máfia neoczarista. Quem assistiu ao filme Arca Russa (Russkij Kovcheg, 2002), dirigido por Aleksandr Sokurov, tem uma idéia aproximada da situação. Os dirigentes e a inteligentsia local cultuam o mesmo estilo pré-revolucionário num país economicamente decadente, numa São Petersburgo agora famosa como capital criminal, centro do contrabando e narcotráfico da Federação Russa.

Essa é a primeira vez em que uma mulher é agraciada com o prêmio. Zaha Hadid é árabe, nasceu em Bagdá, Iraque. Obviamente não mora lá. Cidadã britânica, está radicada em Londres desde o início dos anos de 1970, cidade onde estudou arquitetura e formou-se na Architectural Association, em 1977, tendo antes estudado matemática na Universidade Americana de Beirute, no Líbano, em 1971. Na cerimônia de entrega do prêmio Hadid não agradeceu a Alá, mas lembrou da sua condição de mulher árabe e da importância dessa premiação para incentivar outras, como ela, a tentar alcançar sucesso e fama. Difícil uma mulher conseguir tanto vivendo no Iraque, na Tchetchênia ou em qualquer outro país mulçumano. Hadid finalmente vê realizarem-se na Europa, Estados Unidos e Japão seus projetos que durante muito tempo pareciam impossíveis de serem realizados mas adequavam-se muito bem a exibições de arte abstrata. Os projetos só saíram do papel nos últimos dez anos, vários ainda estão em obras. Premiada aos 54 anos, ela pode ser considerada uma arquiteta com poucas obras construídas, mas com uma fama superior às realizações. Conhecida pelos projetos desconstrutivistas, claramente influenciados pela vanguarda russa dos anos de 1920, notadamente Kasemir Malevich (1878-1935) e El Lisitsky (1890-1941), o primeiro ligado ao movimento Suprematista e o segundo ao movimento Construtivista, Hadid é uma arquiteta cuja importância ainda está por ser comprovada, não como exceção, um exotismo extravagante ou como uma contribuição teórica valiosa, mas como algo que se insira na história da arquitetura e deixe descendência.

Ela pode dar-se por realizada pois já construiu mais do que seus maiores inspiradores, Malevich e El Lisitsky. O presidente da Fundação Hyatt Thomas J. Pritzker justificou a escolha dizendo que “o trabalho da arquiteta garante um futuro promissor”. Lendo as palavras de Mr. Pritzker se pode erroneamente pensar que o prêmio é um estímulo para jovens arquitetos, o valor do premio é simbólico para quem nesse esquema está fadado ao sucesso. O presidente do júri, Lord Rothschild, comentou que ao mesmo tempo em que Hadid desenvolve os trabalhos teóricos, acadêmicos e exerce a profissão, ela assume e declara sua devoção ao modernismo. Tudo perfeito enquanto Bagdá dispensa apresentação. Não há um dia em que a cidade não figure na imprensa devido à guerra que os Estados Unidos estão fazendo pelo petróleo, pouca importância é dada aos tesouros arqueológicos que desaparecem lá e reaparecem em coleções particulares nos EUA e na Europa, é a pilhagem e rapinagem que sempre acontecem nas guerras imperialistas, dos Cesares a George Bush. No Hermitage a solenidade deve ter sido supimpa e, para atiçar a curiosidade dos que ficaram de fora e dos sempre cúmplices mass media, os organizadores jogaram um shador sobre a festa, o que colaborou com um adicional glamour diáfano e uma certa fantasia mítica, convenientes para a ocasião, nem secreta nem pública, restrita a uns poucos convidados mas transmitida pela internet.

Durante esses 25 anos de premiação a Hyatt Foundation namora e casa um arquiteto diferente a cada ano e assim vai ficando, ela mesma, cada dia mais virgem, sem que o seu defloramento se converta em benefício à arquitetura, mas em benefício próprio e dos personagens envolvidos. E se o arquiteto premiado nesse ano não foi lá grande contribuição ao desenvolvimento da arquitetura sempre haverá a expectativa do próximo ano, é disso que vivem as donzelas (3).
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LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)
- Medalha do prêmio Pritzker de Arquitetura. Divulgação.
- Philip Johnson. Foto: Bill Pierce, Time & Life Pictures, Getty Images.
- Zaha Hadid. Foto: Steve Double.

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NOTAS:
(1) Publicado originalmente em 04 de junho de 2004 no Arquitetura Brasil com o título O prêmio Pritzker e seus agraciados.
(2) Projeto Design. São Paulo: Arco Editorial. Edição 262, Dezembro 2001.
(3) Veja a lista completa dos premiados no site The Pritzker Architecture Prize.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. O Pritzker e seus agraciados. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].