domingo, 12 de agosto de 2007

Modernismo bom selvagem (1)

Lançado em 1996, na Suíça, Le Corbusier, der edle Wilde. Zur Archäologie der Moderne (Le Corbusier, o bom selvagem. Por uma arqueologia da modernidade), o livro de Adolf Max Vogt, foi traduzido recentemente para o francês e para o inglês (2). Essa obra despertou interesse dos estudiosos da vida e do trabalho do arquiteto franco-suíço para uma questão óbvia mas nem sempre tratada com a profundidade merecida: o conhecimento dos primeiros anos de formação que revele pormenores do nascedouro das idéias que defiram o vocabulário formal das obras de um dos arquitetos que exerceu tanta e tão duradoura influência no mundo, notadamente no Brasil do século XX.

Como não há previsão de lançamento do livro no Brasil devemos,por enquanto, nos contentar com a leitura das edições européias. Vogt é autor de vários trabalhos sobre teoria e história da arte e da arquitetura, é fundador do Centro para a História da Teoria da Arquitetura da Escola Técnica Federal da Suíça, em Zurique (Eidgenössische Technische Hochschule). Arqueólogo a seu modo, ele analisa o ambiente físico e educacional dos primeiros anos de desenvolvimento do jovem Charles-Edouard Jeanneret. Utilizando-se de documentos datados dos anos anteriores a 1930 negligenciados por outros pesquisadores, o autor nos apresenta um trabalho considerado um marco diferenciador nas pesquisas que envolvem a figura do arquiteto. Vogt está interessado em saber, entre outras coisas, a origem do vocabulário dos projetos de Le Corbusier, como se formou seu senso estético e a sua paixão pelas construções elevadas do solo, numa trajetória e numa escala de tempo que inicia na pré-história e chega à sociedade industrial. Os pilotis são soluções estruturais com origens antigas (pré-históricas, egípcias, greco-romanas) as quais inspiraram o arquiteto modernista que, auxiliado pelas inovações da técnica construtiva e estrutural do começo do século XX, o concreto-armado, criou colunas inteiramente despidas de ornamentos de onde preserva-se apenas o caráter estrutural com desempenho otimizado.

Vogt, interpreta os pilotis de Le Corbusier como uma derivação das palafitas pré-históricas dos lagos suíços; outro autor, Vikramaditya Prakash em Chandigarh’s Le Corbusier (3), transfere essa derivação para a cultura indiana, entretanto, sendo as palafitas uma invenção que não se pode creditar a uma única civilização pois é comum a inúmeros povos com circunstanciais adaptações, a origem dos pilotis corbuseanos podem ser igualmente associada à certa arquitetura popular encontrada no Brasil. Pesquisando a arquitetura brasileira, no período anterior aos anos de 1930, tomei conhecimento de um fato que ilustra a proximidade de Le Corbusier com o Brasil, particularmente com o Recife. Foi publicado no Arquitetura Brasil (4) e na revista Continente Multicultural (5) uma entrevista com Cícero Dias intitulada Uma Anedota Gentil, concedida em 1997, apenas cinco anos antes da morte do pintor pernambucano. Nela é contada a história do projeto de uma residência encomendada pelos Santos Dias, a família do pintor, a Le Corbusier, para ser construída no Recife, entre 1926 e 1929. Essa história não foi uma descoberta de material inédito pois não era inteiramente desconhecida dos leitores, apenas era uma fonte raramente consultada pelos pesquisadores de arquitetura, mais uma fonte negligenciada. Mário de Andrade havia noticiado o fato em artigo do Diário Nacional (6), em 1929, às vésperas da chegada de Le Corbusier ao Brasil, quando ele já era conhecido como uma das maiores personalidades da arquitetura modernista que então se fazia na Europa.

A história da Casa Santos Dias é, resumidamente, a seguinte: Cícero, estudante de arquitetura na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro desde 1925, tomou conhecimento da obra de Le Corbusier, possivelmente, com a leitura da revista L´Espirit Nouveau e com as discussões das idéias sobre a arquitetura modernista que aconteciam na Escola. Estas idéias influenciaram o jovem acadêmico e este deve ter convencido a família a construir uma casa modernista no Recife, às margens do Capibaribe. Para que o arquiteto tivesse uma idéia do local onde a casa iria ser erguida foram providenciadas fotos da cidade que foram enviadas à Europa e, a partir delas, ele pôde fazer um estudo. Além dos aspectos naturais da cidade essas fotos mostravam o ambiente construído, inclusive as palafitas construídas sobre as águas, habitações até hoje existentes mas completamente em desacordo com os padrões mínimos de habitabilidade. Nelas se observa o partido estrutural que eleva a habitação acima do nível da água e permite deixar a superfície livre. Era sobre esses princípios que o arquiteto estava trabalhando desde 1922, quando projetou as casas Citrohan nas quais aparecem os pilotis pela primeira vez, até 1929 quando projetou a casa Savoye, tida até hoje como uma das obras-primas da arquitetura modernista porque nela estão presentes os cinco pontos formalizados por Le Corbusier: construção sobre pilotis, terraço-jardim, planta e fachada livres da estrutura e janela em fita. Foi exatamente neste período de ebulição criativa e de formulação de princípios que ele tomou conhecimento das palafitas do Recife.


No Nordeste do Brasil as palafitas são típicas dos extratos sociais populares e tanto podem ser erguidas inteiramente sobre as águas como podem ser assentados em terrenos inundáveis; o partido estrutural de pilotis em terra firme e seca é raro na arquitetura da região embora possa ocorrer em áreas infestadas por insetos e onde exista perigo de animais selvagens. A construção de uma habitação burguesa (sic) sobre palafitas é uma proposição inteiramente modernista com a qual as habitações populares guardam íntimo parentesco; a casa dos Santos Dias do Recife poderia ter sido um elo exemplar de ligação entre a arquitetura popular regional e o modernismo racionalista e erudito de Le Corbusier, modelo de uma arquitetura com toques rousseaunianos, em perfeito entrosamento com a cultura e o meio ambiente local. Infelizmente essa casa não foi construída nem no Recife nem em lugar algum, Cícero Dias atribuiu a não realização dessa obra aos elevados custos decorrentes do cálculo e da tecnologia que na época teria de ser empregada para a sua realização em concreto armado. Dela foi feito apenas um estudo, um croquis, segundo o mesmo testemunho. Uma casa que em vez de estar elevada sobre um gramado com um automóvel estacionado sob a estrutura, como a casa Savoye, estaria elevada sobre as águas do Capibaribe com uma lancha estacionada sob a estrutura.

As palafitas são uma solução estrutural das mais primitivas que existem, de difícil execução e que requer manutenção freqüente. Sem requinte ornamental, antes de tudo prevalece o instinto de sobrevivência. Trabalha contra um ambiente natural (e às vezes social) extremamente hostil. Os materiais são rústicos e são sempre aqueles que se encontram mais à mão. As palafitas não escaparam a tantos pesquisadores sociais, como Gilberto Freyre, em Sobrados e Mocambos (7). A obra de Freyre vem à lembrança porque ela analisa consistentemente a europeização do Brasil e se podemos admitir que o Brasil europeizou-se, o contrário é admissivel: o mundo e, por extensão, Le Corbusier abrasileiraram-se não apenas com o reconhecimento internacional da arquitetura erudita que aconteceu anos depois com o trabalho do grupo de modernistas que reunia, entre outros, Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Eduardo Reidy, mas também pela expressão da cultura popular que também foi pródiga no século XX.

O último levantamento realizado na Fondation Le Corbusier acerca dos documentos lá guardados sobre o Brasil foi feito entre 1986 e 1987. Desse levantamento resultou o livro Le Corbusier e o Brasil (8). Em 1987 foi comemorado o centenário de nascimento do arquiteto e a Fondation deu início a uma reclassificação dos documentos do arquivo. Lamentavelmente nem o citado livro nem o trabalho de reclassificação levaram em conta o testemunho de Mário de Andrade, em 1929, para fixar de forma mais pormenorizada os fatos que anteciparam a primeira viagem de Le Corbusier ao Brasil.
Fora a notícia de Mário de Andrade e a entrevista de Cícero Dias, não foi encontrada outra evidência dessa obra não-construída. O esboço nem as fotos do Recife enviadas para o ateliê do arquiteto jamais foram localizados. Caso sejam encontrados, será fechada com maior riqueza documental essa lacuna na história das relações entre Le Corbusier e o Brasil, com um fato que é um antecedente da fusão que permitiu à arquitetura brasileira, anos mais tarde, firmar-se mundialmente como uma das mais criativas e promissoras. São pequenos fatos como estes que fazem entender como o modernismo aglutinou valores tão dispares e, ao mesmo tempo, tão comuns a tantos povos e culturas. Torna-se um fato cada vez mais interessante essa Casa Santos Dias no Recife a par dos novos estudos feitos sobre Le Corbusier, particularmente depois do livro de Adolf Max Vogt.

LEGENDAS DAS ILUSTRAÇÕES (de cima para baixo)
- Capa da tradução para o inglês. Divulgação.
- Musee National Suisse - Balade en préhistoire - scène d'échanges dans un village néolithique, vers 2.700 avant J.-C. - Aquarelle de Brigitte Gubler.
- Palafitas no Nordeste do Brasil. Foto M Vitor.

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NOTAS:
(1) Publicado originalmente em Arquitetura Brasil, 28 de maio de 2004.
(2) VOGT, Adolf Max. Le Corbusier, der edle Wilde. Zur Archäologie der Moderne. Birkhauser Verlag AG, 1996. (Em alemão).
________. Le Corbusier, le bon sauvage. Vers une archéologie de la modernité. In folio, 2003. (Em francês).
________. Le Corbusier, the Noble Savage: Toward an Archeology of Modernism. Cambridge, MIT Press, 1992. (Em inglês).
(3) PRAKASH, Vikramaditya. Chandigarh’s Le Corbusier: The Struggle for Modernity in Postcolonial India. Washington, University of Washington, 2002.
(4) Uma Anedota Gentil. Entrevista de Cícero Dias a Claudio Cruz. Arquitetura Brasil, 28 de março 2003.
(5) Uma Anedota Gentil. Entrevista de Cícero Dias a Claudio Cruz. Revista Continente Multicultural. Ano 3, março 2003, edição nº 27.
(6) ANDRADE, Mário. Táxi e crônicas no Diário Nacional, São Paulo, Duas Cidades/Secretaria de Cultura, 1976, p.161 – 162.
(7) FREYRE, Gilberto. decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.
(8) SANTOS, Cecília Rodrigues dos [et al.]. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela / Projeto Editora, 1987.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Modernismo Bom Selvagem. Heliográfica, online, Recife. Agosto/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Um marco na paisagem (1)


Ergue-se no Bairro do Recife o Edifício Luciano Costa, obra de dois arquitetos. O primeiro, não identificado, projetou o edifício por volta de 1915. O segundo projetou, em 1959, a reforma que lhe deu a configuração atual (2). Este se chamava Delfim Fernandes Amorim (1917-1972) (3). Nascido em Portugal, veio para o Brasil em 1951, fixou-se no Recife onde possui vários edifícios construídos, como o Edifício Pirapama (1956), de uso misto, localizado na avenida Conde da Boa Vista; o Edifício Acaiaca (1958), de uso residencial, localizado na avenida Boa Viagem; o Edifício Independência (1965), de uso comercial, localizado na rua Sete de Setembro.

O Edifício Luciano Costa, de uso comercial, abriga lojas e escritórios, poderia ser uma obra menor se comparada com estes outros projetos do arquiteto não fossem algumas particularidades que o distinguem. Um marco na paisagem da cidade portuária, ele merece a atenção não apenas pelo seu aspecto incomum que contrasta com edifícios em volta, ecléticos, como o Centro Cultural Bandepe, ou modernistas, como o City Bank. Incomum por conter elementos sobrepostos dessas duas correntes arquitetônicas que, em muitos aspectos, se antagonizam. O edifício é, inequivocamente, complexo e contraditório (4).

O que significa o Edifício Luciano Costa para leigos e não-leigos, para seus usuários, para os transeuntes, para aqueles que se sentem atraídos pelas discussões sobre arquitetura, que justifique a sua preservação? Essa pergunta não se responde sem que antes se exponha as condições dele e do sítio onde ele está implantado.

Tal local é de rica tradição histórica, sendo uma forte referência na formação da identidade cultural da cidade. Aí se deram desde os assentamentos mais antigos, surgidos ainda no século XVI, as transformações urbanas dos séculos seguintes, os projetos de revitalização dos nossos dias. Exatamente nesse ponto, ou muito próximo dele, conforme a cartografia antiga da cidade registra, erguia-se a Matriz do Corpo Santo, a primeira igreja construída na então vila do Recife. A Matriz foi demolida entre os anos de 1905 – 1909, durante os trabalhos do Plano de Saneamento do Recife, idealizado pelo engenheiro Fernando Saturnino de Brito. Este Plano transformou profundamente a antiga cidade colonial e o seu porto. Foi com este Plano que um novo traçado de quadras foi definido.

Do arruamento antigo, datado do século XVI, foi mantido o caminho que demandava de Olinda em direção à Ilha de Antônio Vaz, que corresponde à atual Rua do Bom Jesus e seus prolongamentos; esta rua define o lado ocidental da referida quadra. Sobre este arruamento antigo foi sobreposto o traçado do tipo radial que conhecemos, hoje, cujo centro foi estabelecido na atual Praça do Marco Zero. Nas quadras resultantes dos trabalhos do Plano de Saneamento foram erguidos vários prédios num curto período de tempo, inclusive o edifício que antecedeu o atual Edifício Luciano Costa, que só recebeu esta denominação na reforma de 1960. Em estilo “eclético” (5), este primeiro edifício era

“(...) dotado de três pavimentos, organizava-se em torno de um pátio coberto central, para onde voltavam-se as circulações dos dois pavimentos superiores. Sua composição foi elaborada a partir de um eixo de simetria definido pela esquina da Rua do Bom Jesus com a antiga Avenida Central, o que correspondia ao ponto de melhor visada da Praça Rio Branco. Dessa forma, o Edifício incluía-se na composição do novo cenário urbano, notadamente pelo arremate daquela esquina com uma torre de base circular, coroada por cúpula revestida em chapa metálica, adequando-se, assim, ao panorama do Bairro das torres. Seu térreo apresentava tratamento em bossagem contínua, sobre o qual assentava-se pilastras coríntias em ordem dupla. Cornija e platibanda contíguas arrematavam a composição. Apresentava como característica peculiar o jogo de balcões, com guarda-corpo em balaústres, projetados das aberturas de elegantes proporções verticais. Internamente, o Edifício caracterizava-se pela compartimentalização do plano em salas isoladas, dispostas ao longo das vias públicas e acessíveis por corredores abertos, voltados para o pátio triangular interno. Os altos pés-direitos conferiam o conforto térmico necessário para a ocupação e bom desempenho das tarefas cotidianas. Neste sentido, o pátio coberto prestava-se para a exaustão do ar quente, através de um conjunto de esquadrias de veneziana de madeira localizadas abaixo de sua estrutura de coberta“ (6).Os desenhos do projeto original estão perdidos e a reforma de 1959 muito o descaracterizou. Mas hoje ainda é possível observar, no local, algumas características do edifício que não se perderam na reforma projetada por Delfim. Outras características, como a torre de base circular, coroada por cúpula revestida em chapa metálica, sob a qual se dava o acesso principal ao interior do edifício, estão perdidas. Algumas poucas fotos restaram para testemunhar o aspecto exterior que tinha o edifício entre os anos posteriores a 1915 e os anteriores a 1959. Tais fotos confirmam a inserção do mesmo na composição urbana geral, morfológica, ambiental e social que definia o “Recife Novo” como portador de uma paradoxal unidade eclética decorrente das reformas planejadas e implantadas para uma cidade que se livrava do seu passado colonial e almejava o progresso do século XX. Mas esse “Recife Novo” em pouco tempo perdeu a atualidade. Um dos fatores que contribuiu para a sua desatualização foi o modernismo racionalista na arquitetura brasileira, acontecido a partir da década de 1930. Este contribuiu para que, rapidamente, uma nova estética arquitetônica viesse a suplantar os estilos historicistas. Outro fato determinante para a desatualização daquele Bairro foi o fenômeno da polinucleação metropolitana da cidade do Recife, quando novos centros atraíram as atividades econômicas, que antes eram exclusivas do centro para bairros afastados. Nos anos de 1970 começou a ser construído o porto de Suape, no litoral sul do Estado, retirando do porto do Recife seu papel de mais importante porto marítimo de Pernambuco, razão pela qual o Bairro perdeu a sua atividade econômica mais rentável. Embora até hoje o Porto não tenha sido completamente desativado, sua importância relativa na geração de riqueza foi diminuída. Atualmente no Bairro do Recife ganham importância as atividades ligadas à administração pública, prestação de serviços e comércio. O seu uso residencial é muito restrito, os residentes concentram-se em cortiços isolados e na Comunidade do Pilar, uma área de baixa renda e condições precárias de habitabilidade.

Estes fatos determinaram a deterioração do bairro e do edifício em apreço. Particularmente em relação a este, a qualidade dos materiais construtivos e as atividades de seus ocupantes igualmente podem ter determinado sua rápida deterioração. Antes de 1960, ele foi utilizado pelo Banco Agrícola e Comercial de Pernambuco e depois pela Alfândega. “O seu último ocupante deixou o Edifício em péssimas condições de conservação (...) este parece ter sido os motivos da solicitação feita ao arquiteto Delfim Amorim, em 1959, para a reforma” (7). Não constatamos que durante a sua existência o edifício sofreu mudança de uso ou desuso. Ele foi superusado sem a contrapartida das manutenções periódicas.

Embora a reforma proposta por Delfim tenha modificado também o interior do Edifício, esta notabilizou-se pelo tratamento dado à fachada. O arquiteto ocupou o pátio interno, manteve o gabarito de altura, a quantidade de pisos e os pés-direitos dos pavimentos superiores, o térreo recebeu tratamento diferenciado, a entrada principal foi deslocada para a rua Dona Maria César e sobre a fachada da velha construção eclética, a uma distância variável, pôs uma nova fachada que funciona como um véu de cobogós cerâmicos que recobre, externamente, a partir do nível da marquise, os pavimentos superiores. Os motivos que levaram os proprietários a solicitarem a reforma podem ter sido dois ou a sua combinação: uma real e imediata necessidade de reforma do imóvel deteriorado e o desejo de fazer o edifício expressar a mesma aparência de vários outros edifícios modernistas projetados pelo mesmo Delfim Amorim na cidade; estes eram nos anos de 1950-1960 reconhecidos como portadores de valores que simbolizavam os novos tempos e o progresso inesgotável, tanto quanto os ecléticos foram nos anos de 1900-1930.

Mais do que motivos objetivos, como os limitados recursos econômicos e o partido estrutural, os motivos que fizeram o arquiteto propor essa fachada oscilam entre sua improvável preocupação preservacionista e sua veia iconoclasta, o que parece mais provável, porque até aquela época não foi pratica corrente da arquitetura modernista contextualizar com o meio ambiente construído, essa é foi uma preocupação individual de alguns arquitetos e em casos esporádicos. Tal atitude seria muito mais improvável em relação à preservação de um exemplar representante do ecletismo, tido como desprovido de um caráter e de uma expressão luso-brasileira autêntica. Independente dos motivos que levaram os proprietários a solicitar a tal reforma e do que pretendia o arquiteto quando a projetou, seu resultado é, sem dúvida, uma obra que, no mínimo, desperta a curiosidade e, além disso, pode ser incluída como uma das mais paradigmáticas de todo o modernismo arquitetônico pernambucano, uma obra “que suplanta o seu autor, porque as questões que ela apresenta não podem ser limitadas pelos contornos de sua obra” (8).

Esse argumento que inseriu o Edifício Luciano Costa num lugar de destaque entre as obras de Delfim Amorim, no cenário arquitetônico pernambucano, quiçá no cenário brasileiro, talvez tenha servido para superar a etapa em que as discussões sobre o destino do Edifício polarizaram entre duas correntes:

A primeira defendia a retirada da fachada de Delfim, com a conseqüente recuperação da fachada do edifício eclético que há por trás e, talvez, até a recuperação de sua torre desaparecida, posição defendida pelos proprietários e por parte dos usuários do edifício.

A segunda defendia a manutenção e recuperação da fachada de Delfim e, conseqüentemente de outras melhorias gerais, essa última posição era defendida pelos órgãos de proteção do patrimônio arquitetônico e pelos herdeiros do legado deixado pelo arquiteto português.

Finalmente chegou-se, depois de discussões que se desenrolaram nos últimos quatro anos, a um consenso que parece satisfazer a ambas as partes, ou seja, uma terceira corrente que defenda a manutenção da obra de Delfim ao mesmo tempo em que se revela parcialmente do edifício eclético.

Mas como revelar o edifício eclético por trás da fachada criada por Delfim? A revelação do que há por trás será resultante de um desejo e uma boa dose de curiosidade individual do transeunte que olhar mais atentamente para o que há sob o véu? A revelação terá de ser promovida por um artifício arquitetônico que descaracterizará a obra do arquiteto? A retirada de alguns elementos vazados para possibilitar a visualização do mesmo já foi considerada como não adequada “apesar de sua lógica fundada na valorização do aspecto preservacionista da intervenção” (9).

No momento em que esse trabalho foi redigido, o projeto arquitetônico de reforma do edifício estava em andamento. Talvez esse trabalho pouco acrescente ao que pensam e ao que pretendem os arquitetos de o desenvolvem, mas o objetivo que almejamos alcançar com este artigo é contribuir na tomada de decisões projetuais que serão necessárias para que o edifício ganhe no uso e na aparência externa uma funcionalidade à altura da sua relevância como um marco na paisagem da cidade.

Voltando a pergunta, o que significa o Edifício Luciano Costa que justifique a sua preservação? Mais do que significado coletivo e social, a peculiaridade dele está nele mesmo, em valores muito abstratos como no convívio de dois tempos, de duas correntes arquitetônicas e na relação entre sua massa construída e o entorno. A defesa da preservação obra de Delfim Amorim no Edifício Luciano Costa carece do valor público inerente ao conceito de patrimônio simbólico coletivo, por este motivo sua manutenção, pelo menos no que diz respeito às fachadas de cobogós cerâmicos, é particularmente difícil, com o perigo de se comprometer o valor do imóvel por completo.


LEGENDAS DAS ILUSTRAÇÕES (de cima para baixo)

- Em primeiro plano o edificio onde hoje funciona o Centro Cultural Bandepe; o Edificio Luciano Costa, visto do Marco Zero, está em segundo plano, com a torre coroada por cúpula. Fonte: Departamento de Iconografia da Fundaj, sem data.

- Fotografia tirada do mesmo ponto de vista da anterior. Foto do autor, 2004.

- Planta Baixa do Pavimento-tipo. Fonte: Delfim Amorim Arquiteto. Recife: Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de Pernambuco, 1981.

- Corte. Fonte: Delfim Amorim Arquiteto. Recife: Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de Pernambuco, 1981.

- Fotografia tirada do ângulo da rua do Bom Jesus com avenida Rio Branco. Foto do autor, 2004.

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NOTAS

(1) Texto desenvolvido a partir de monografia para obtenção do título de Especialização em Design da Informação no Departamento de Design da UFPE em 2004 com o título: As fachadas do Edificio Luciano Costa. Publicado originalmente em Arquitetura Brasil, 03 de julho de 2004 com o título: Edificio Luciano Costa, um marco na paisagem.

(2) Refere-se à configuração do edificio à epoca da primeira publicação do texto.

(3) Complexo e contraditório, referência à obra de Robert Venturi. VENTURI, Robert Complexity and Contradiction in Architecture. New York: The Museum of Modern Art, 1966.

(4) Delfim Amorim Arquiteto. Recife: Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de Pernambuco, 1981.

(5) Estilo eclético: caracteriza-se por comportar as mais diversas interpretações do vocabulário formal dos estilos históricos. No Brasil ocorreu num período entre o final do século XIX e início do século XX. Nikolaus Pevsner denominou “baile de máscaras” a arquitetura desse período.

(6) AMORIM, Luiz Manuel do Eirado. Edifício Luciano Costa: um enfoque apositivo. Vitruvius, Arquitextos. São Paulo.

(7) Idem.

(8) Idem.

(9) AMORIM, Luiz Manuel do Eirado. Diretrizes para uma possível intervenção do Edifício Luciano Costa em Recife. Vitruvius, Minha Cidade. São Paulo.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. Um marco na paisagem. Heliográfica, online, Recife. Agosto/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].