segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Recife pós-industrial (1)



O Recife é uma cidade que está estreitamente ligada ao povoamento e ao desenvolvimento socioeconômico e cultural das Américas e, mais particularmente, do Brasil. Nestes quase cinco séculos de sua existência, ela passou por diversas transformações que marcaram profundamente sua fisionomia e mudaram os hábitos citadinos. Nascida no ciclo econômico da cana-de-açúcar, as transformações mais significativas foram aquelas determinadas pelo processo, ainda que periférico e, por isso mesmo tardio, de industrialização do país, fato que marcou não apenas o Recife, mas também outras cidades brasileiras e o Brasil no século 20.
O município chegou ao século 21 com as características de uma sociedade pós-industrial e, diante dessa nova realidade, seus problemas urbanos solicitaram outras posturas dos gestores municipais, mais adequadas às questões a serem enfrentadas. A gestão urbana de uma cidade como o Recife possui mais semelhanças com a de uma cidade como Baltimore (EUA) do que com Ipojuca (PE) distante apenas 50 Km, embora as conexões com esta última sejam mais intensas do que com a cidade norteamericana. As regiões metropolitanas brasileiras, dentre elas a do Recife, que possui 14 municípios e 3,65 milhões de habitantes, foram criadas nos anos de 1970 e tornaram-se cada vez mais heterogêneas, consequentemente, inviabilizou-se a criação de um sistema de gestão de funções públicas de interesse comum. Talvez tenha naufragado neste pormenor significativo o mecanismo legal de uma administração unificada das RM´s, cada município faz por si, solução que poderia ser caótico, parece ser a mais adequada.
O Recife é uma cidade pós-industrial, sua hinterland é industrial. A cidade industrial é aquela que desenvolve prioritariamente as atividades do setor Secundário da economia. A cidade pós-industrial é, essencialmente, uma prestadora de serviços, nela, desenvolvem-se as atividades do setor Terciário da economia. Tais cidades constituem-se mais como locais de consumo do que como locais de produção de bens. No Recife o setor de manufaturas, que emprega cada dia menos pessoas, migrou ou estabeleceu-se alhures, em localidades específicas, agrárias ou semi-agrárias, entretanto, próximas às vias de comunicação e de transporte.
Estas vias distribuem a produção industrial na região e para fora do país, cumprindo a sua função mercantil. Por volta da década de 80, grande parte da atividade do Porto do Recife começou a ser transferida para o novo terminal marítimo de Suape, distante cerca de 40 km, até então uma pacata vila de pescadores no litoral sul de Pernambuco, que em pouco tempo transformou-se num complexo industrial-portuário.
Cidade de origem e tradição portuária, o Recife teve de adaptar-se a esta situação que se impunha quase incondicionalmente, o fato de que a capacidade de movimentação de carga e a capacidade de atracar navios de grande porte tornou-se inviável na maior extensão do seu cais. A cidade inteira e, particularmente, o Bairro do Recife, sentiu os efeitos destas mudanças. Procurando adaptar-se às novas conjecturas, desde então, o Bairro passou a desenvolver projetos que invariavelmente apresentam o prefixo RE: revitalização, renovação, reconsolidação, reconstrução, requalificação, entre outros. Tudo isso nada mais é do que uma única RE: o redirecionamento de sua atividade econômico-produtiva rumo a um modelo econômico de cidade pós-industrial. A sintonia com este modelo permitirá auferir à urbanidade de toda a cidade, e não apenas ao bairro do Recife, os ganhos que ela necessita para sua sustentabilidade.
No Bairro do Recife surgiram várias iniciativas, públicas e privadas, voltadas às atividades Terciárias da economia. Atendendo estas iniciativas foi traçado um plano que permitisse lançar as bases que tornariam o local atrativo a investimentos. Este aporte de capital é o que tornou possível a readequação dos edifícios e dos espaços livres. Depois de 10 anos de implantado o Plano de Preservação do Bairro do Recife, pode-se afirmar que estas iniciativas alcançaram algum êxito e de certa forma preservaram o ambiente natural.
Não apenas no Recife, mas em vários lugares do mundo tem sido assim a história de projetos de recuperação das antigas cidades industriais, com seus prédios e bairros deteriorados: aumento da diversidade, o território formando uma base para um mix de atividades que enfatizam a idéia de rede. Locais criados sob essa perspectiva têm chances de encontrar um ponto de equilíbrio e voltar a ser saudáveis, permitindo que mais pessoas os freqüentem e, acima de tudo, queiram trabalhar e viver ali.
LEGENDA DA FOTO:
- Recife, vista aérea. Autor não identificado. Divulgação.
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NOTA:
(1) Publicado originalmente no Arquitetura Brasil em 11 de outubro de 2002.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Recife pós-industrial. Heliográfica, online, Recife. Outubro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Violência e Arquitetura (1)


O crescente índice de violência urbana gerou, na sociedade atual, uma demanda desenfreada por equipamentos, dispositivos e técnicas que tenham a finalidade de assegurar a integridade da pessoa e da propriedade. Não só os hábitos corriqueiros refletem esse clima de insegurança, a forma das habitações e da própria cidade também foram alteradas em função desta realidade já marcada pela ancestral necessidade de abrigo e segurança indispensáveis ao bem-estar do homem.

Segurança não é uma preocupação exclusiva da sociedade hodierna, altamente urbanizada e socialmente injusta. Ao contrário, a história demonstra que desde a antigüidade, em sociedades predominantemente agrárias e socialmente mais justas que a nossa há exemplos que ilustram a preocupação com a segurança das habitações e das estruturas citadinas, afinal, estes deveriam ser lugares seguros por excelência por possuírem as características que os distinguem dos primevos abrigos que antes protegiam os homens das intempéries, das feras e do próprio homem. Vale ressaltar que as cidades muradas, os castelos com torres e passadiços, igrejas barrocas com seteiras, fortalezas na costa, todos estes são programas e detalhes construtivos que consideravam tanto a defesa quanto o ataque.

Hoje guaritas, cercas e muros são equipamentos amplamente utilizados nas habitações. A população discute a utilização de câmaras de espia nas vias públicas das cidades, mas a questão é: será que tais equipamentos cumprem sua função primordial de resguardar vidas e patrimônios? A julgar pelas estatísticas a resposta pode ser negativa. Mecanismos dessa natureza criam apenas desconfiança mútua e isolamento, promovem a segregação social e extinguem as práticas comunitárias integradoras.
A barreira física e a vigilância eletrônica temperadas de impessoalidade desestimulam a vida coletiva que pode ser o mais eficaz antídoto contra a violência. É a falta de integração entre os cidadãos o que acaba por servir de estímulo à geração de mais violência. Num ciclo de retroalimentação intramuros constata-se a violência doméstica despontando nas estatísticas a cada dia com maior freqüência. O fato é preocupante, pois atinge principalmente crianças e mulheres em seus lares, um espaço tradicionalmente tido como seguro, se comparado às ruas.
As precárias condições de vida - falta de habitação e péssima distribuição de renda-, são a principal causa dos conflitos sociais que podem transformar o cidadão em um inimigo potencial. Neste estado que podemos considerar emergencial não há muros nem guaritas que protejam uma sociedade que tornou-se refém de si mesma. Para superá-lo faz-se necessário criar espaços saudáveis e restaurar as áreas degradas das cidades, além de eliminar bolsões de pobreza e investir em infra-estrutura urbana a fim de resgatar e fomentar o convívio grupal. A adoção dessas medidas pode reverter o crescente número de casos de violência estatisticamente registrados.
A sociedade pacífica não é uma visão utópica, mas uma realidade com a qual os arquitetos podem contribuir para a sua concretização criando espaços saudáveis que promovam a integração social e consequentemente a superação dos conflitos. São vários os exemplos de projetos imbuídos desta preocupação, o que é louvável. Também são fartos os exemplos de uma arquitetura que pode alimentar a violência, o que é lamentável. Oxalá prevaleça a primeira sobre a segunda.


LEGENDA DA FOTO:
- Muro de Berlim. Autor não identificado. Divulgação.
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NOTA:
(1) Publicado originalmente no
Arquitetura Brasil em 09 de setembro de 2002.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Violência e Arquitetura. Heliográfica, online, Recife. Outubro/2007. Disponível: heliografica.blogspot.com Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo (1)

Quando encerrou-se o XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos, estava dado um importante passo em direção à tão esperada organização autônoma profissional. Naquele sábado, dia 03 de maio de 2003, a plenária final aprovou, por unanimidade, a Declaração do Rio, o principal documento do Congresso, que trata da criação do Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo. O documento foi apresentado pelos arquitetos João Filgueiras Lima, o Lelé (Patrono do XVII CBA); Severiano Mário Porto, Miguel Alves Pereira, Joaquim Guedes, Jaime Zettel e Haroldo Pinheiro (Presidente Nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB).


Uma profissão regulamentada possui legislação e normas de funcionamento. No Brasil, para que as leis que tratam do exercício profissional fossem aplicadas, criaram-se os Conselhos Profissionais. O que reúne engenheiros, arquitetos e agrônomos foi criado em 1933. Além de exercer atividade de fiscalização do exercício profissional, também faz parte das atribuições dos conselhos o estímulo à política de valorização profissional. A criação de um exclusivo para os arquitetos é um passo neste sentido e que permitirá à sociedade uma melhor interação com esses profissionais e com os serviços que eles oferecem.

A criação de um conselho desligado do sistema Confea/Crea’s, que hoje não reúne apenas engenheiros e agrônomos, mas uma centena de títulos profissionais, era um sonho acalentado por sucessivas gerações de arquitetos e sua criação sempre foi uma questão polêmica. A iniciativa vem adequar o Confea/Crea’s a uma nova realidade, bem diversa daquela que havia no Brasil de 1933 e abre a possibilidade para que engenheiros e agrônomos também tenham seus próprios Conselhos.

A criação através do Anteprojeto de Lei para a Regulamentação da Arquitetura e Urbanismo no Brasil, foi uma proposta lançada pelas cinco entidades nacionais de arquitetos (IAB, FNA, AsBEA, ABEA e ABAP), assunto da quase totalidade das mesas-redondas e conferências do XVII CBA e recebeu o apoio público dos seguintes arquitetos: Carlos Fayet, Carlos Fernando Andrade (Presidente de Honra do XVII CBA), Clóvis Ilgenfritz da Silva, Dirceu Carneiro, Jaime Lerner (Presidente da UIA), Mário António do Rosário (Presidente do CIALP), Marcos Konder Netto, Nabil Bonduki, Nestor Goulart dos Reis Filho (primeiro signatário do abaixo-assinado de apoio), Oscar Niemeyer, Pasqualino Magnavita, Paulo Mendes da Rocha, Rosa Kliass, Roberto Segre, Ruy Ohtake e de representantes da classe estudantil.

O Arquitetura Brasil reproduziu um artigo intitulado Arquitetura, atribuição de arquiteto, de Haroldo Pinheiro, elaborado por solicitação da revista Construção OESP - edição de fevereiro/2003, em que o autor trata de questões relativas à permanência ou não dos arquitetos no sistema Confea/Crea’s. Antes que pareça uma adesão à causa da emancipação dos arquitetos, os artigos publicados pelo Arquitetura Brasil refletem a opinião dos autores. Em três oportunidades (13 de maio, em 04 e 05 de junho), o Arquitetura Brasil procurou contactar, por e-mail, Wilson Lang, Presidente do Confea/Crea’s, solicitando que opinasse sobre a Declaração do Rio. O Arquitetura Brasil foi informado que o Conselho ainda não tomou conhecimento da referida declaração e só vai manifestar-se após este conhecimento formal. Acrescentou que já se manifestou sobre este assunto em diversas oportunidades e sempre com o mesmo teor. Inclusive no discurso de abertura do Congresso [XVII Congresso Brasileiro de Arquitetos]. O mesmo Wilson Lang, em declaração publicada no website da Agência Senado, disse mais: a separação irá enfraquecer as categorias profissionais. E que engenharia e arquitetura são profissões interligadas e fazem parte de uma mesma estrutura orgânica de trabalho, razão pela qual não vê com bons olhos a separação.

Enquanto o Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo não se torna uma realidade, importantes passos continuam sendo dados em favor de sua concretização. O mais recente aconteceu no último dia 12 de maio [de 2004], quando a Comissão de Assuntos Sociais (CAS), do Senado Federal, em Brasília (DF), examinou em audiência pública a viabilidade da regulamentação do exercício da arquitetura e do urbanismo, e a criação do Conselho Federal da classe e dos respectivos conselhos regionais, como prevê o projeto de lei do senador José Sarney (PMDB-AP), que tramita em caráter terminativo no colegiado. Estiveram presentes à audiência vários senadores, dentre eles, o relator do projeto (PLS 347/03), senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG). Vários especialistas na matéria também estiveram presentes e manifestaram apoio à criação de órgãos próprios de fiscalização profissional de arquitetura e urbanismo.

Subjacente a todas as preocupações e dúvidas manifestadas pelos envolvidos nas discussões há a certeza de que o surgimento do Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo é, sobretudo, uma perda de receita para o Confea/Crea’s. E mais, longe de ser uma reivindicação isolada dos arquitetos é uma tendência que pode ser seguida pelas diversas categorias profissionais agrupadas no sistema, a maioria deles sem qualquer interesse em comum. Se a criação do Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo for bem sucedida, há a possibilidade de que não tarde o momento em que a que outras categorias façam o mesmo, criando seus próprios conselhos autônomos, desvinculados do Confea/Crea’s. A concretização dessa hipótese levaria a uma perda de receitas futuras e a própria extinção do sistema. A preocupação de Lang é pela sobrevivência do sistema; como seu presidente deve, naturalmente, preservá-lo.

O Projeto de Lei está disponível online, foi elaborado com a consultoria jurídica de Miguel Reale Júnior, concretiza os compromissos assumidos no manifesto "Aos Arquitetos e à Sociedade Brasileira", de 12 de maio de 1999, reafirmado em São Paulo em 11 de dezembro de 2002 e propõe reordenar o exercício da Arquitetura e Urbanismo, adaptando-o aos princípios da nova Constituição Brasileira. O mesmo projeto promove uma releitura dos instrumentos legais existentes e se articula a um Código de Responsabilidade Profissional, a um Código de Ética, bem como as demais normas constitucionais e infraconstitucionais brasileiras.


LEGENDA DA FOTO:
- Haroldo Pinheiro. Presidente IAB-DN, na solenidade de abertura do XVII CBA no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Foto Gilberto Belleza. Divulgação.

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NOTA:

(1) Matéria editada a partir de duas que foram publicadas originalmente no Arquitetura Brasil; a primeira com o título Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo, do dia 13 de junho de 2003; a segunda com o título Novamente sobre o Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo, do dia 28 de maio de 2004.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo. Heliográfica, online, Recife. Outubro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Surpresa e Ousadia (1)

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Ruy Ohtake é um daqueles profissionais que não passam despercebidos. Polêmico, ele está, aos poucos, modificando a paisagem de São Paulo, com projetos multicoloridos e formas extravagantes. Sua produção arquitetônica começou em 1960, assim que concluiu a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Atualmente, além dos projetos arquitetônicos, ele também cria conjuntos de móveis (2).

Nessa entrevista Ohtake elege Oscar Niemeyer como o mais importante arquiteto do mundo, fala sobre suas obras mais recentes e tece comentários sobre a atual produção arquitetônica nacional.


Arquitetura Brasil: O senhor é conhecido como um arquiteto que explora a forma curva. Essa afirmação indica que reside aí a ousadia expressiva da arquitetura brasileira?

Ruy Ohtake: Quando provoca surpresa, quando produz leveza, quando estimula emoção, a curva é um dos elementos que podem caracterizar a arquitetura brasileira.

ArqBr: Ultimamente alguns de seus projetos lembram frutos. As semelhanças são conscientes? Fale a respeito.

RO: A minha arquitetura é, por vezes, orgânica. E talvez isso leve as pessoas a ligarem à natureza: as curvas da montanha, as ondas o mar, o peixe da praia, etc.


ArqBr: Comente sua produção mais recente, principalmente o Hotel Unique, o Ohtake Cultural e o mobiliário.

RO: O Ohtake Cultural é uma proposta contemporânea para a uma cidade cosmopolita como São Paulo. Lá, os escritórios – seus usuários – convivem com os espaços de cultura: áreas de exposições, ateliês, teatro; com espaços de lazer: restaurante, livraria, loja. O bairro participa do complexo, concluído há apenas 10 meses, as propostas começam a se efetivar. A arquitetura abre a região para a contemporaneidade.
O Hotel Unique tem a longa curva em arco invertido, possibilitando dois grandes espaços laterais, com 25 metros de altura: são os dois acessos. São dois pontos fortes do projeto, para uma grande cidade, para uma metrópole. Portanto, um hotel urbano. Os apartamentos das laterais são bastante curiosos, porque fiz o piso subir em curva, acompanhando o desenho da fachada até encostar no forro. Espaço interno surpreendente. Os corredores dos andares são curvas que alcançam as janelas, trazendo uma bonita luz exterior. Espaço inusitado.
Tenho projetado alguns conjuntos de móveis. Desenhei um móvel com 16 metros de comprimento, e que ocupa adequadamente o saguão de um hotel, em Brasília. Procuro trabalhar com as características próprias de cada material. Inventividade que o concreto permite, como fiz em várias estantes, escadas, peitoris e mesas. A leveza do metal, a partir da combinação de calandras: o aparador Filippelli, o sofá Três Ondas, a mesa Origami. A transparência colorida do vidro como superfície: várias estantes, a mesa ecológica.

ArqBr: Em trabalho recente, Glauco Campello afirmou que há na arquitetura brasileira um eixo constante e unificador cujos atributos são singeleza, concisão e clareza. Onde esses atributos se manifestam na sua obra?

RO: Além de atributos de singeleza, concisão e clareza, referidos por Glauco, competente e generoso arquiteto, acrescento os de surpresa e ousadia.


ArqBr: A arquitetura produzida no Brasil beneficia-se de uma crítica parcial ou mesmo inexistente?

RO: A arquitetura deve evoluir com crítica ou sem crítica. Melhor com boa crítica, com boas publicações e boas escolas.

ArqBr: Há um saudosismo pela arquitetura moderna brasileira e um certo desprezo pela produção recente, qual a sua opinião a respeito?

RO: A arquitetura, com sua trajetória passada ou recente, pode nos indicar alguns caminhos. O resto é com a proposta de cada arquiteto.

ArqBr: Aponte os projetos e arquitetos brasileiros mais representativos, atualmente. Existe alguma tendência ou corrente arquitetônica iniciada ou desenvolvida no país recentemente?

RO: Oscar Niemeyer é o mais importante arquiteto do mundo. Sua arte será referência ao longo dos próximos séculos. Respeito muito Lucio Costa, uma primorosa sabedoria. Gosto bastante de Lelé e de Lina Bo Bardi. Acho importante Paulo Mendes da Rocha. A tendência que eu gosto é a de dar continuidade à arquitetura brasileira.

ArqBr: Como vê a situação da arquitetura brasileira no cenário internacional?

RO: Niemeyer conquistou o reconhecimento mundial, e abriu espaço para a arquitetura brasileira, que tem projetos interessantes. Merece maior espaço em publicações internacionais, em certames e também congressos.

ArqBr: O que distingue as idéias aparentemente contrárias do "nivelamento das identidades e tradições locais com a globalização" e "um mix de culturas presente na América e no Brasil", já que ambas, na essência, diluem a idéia de nacionalidade, tão cara aos brasileiros?

RO: A cultura regional passa a ser importante quando atinge patamar universal. No cinema atual, são exemplos: Central do Brasil, de Walter Sales e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Katia Lund. A América Latina tem desafios muito semelhantes, desde México e Cuba, desde Colômbia e Brasil. Cada país, cada região deve buscar suas propostas, que se forem da essência local em nível universal, ótimo. Se for mera expressão internacional, uma pena. Não se deve confundir diluição, que é globalização, com semelhança, que é a luta comum.

ArqBr: Na sua opinião, qual o papel do arquiteto nas causas que envolvem as classes menos favorecidas?

RO: Quando elaborei o projeto O Menino e O Mar, com Ruth Escobar, pensei na dignidade e na beleza para os espaços que abrigam 300 crianças de famílias muito pobres do litoral norte de São Paulo, em um bonito programa de educação. A arquitetura pode ser feita com materiais simples. Não se pode é abrir mão da criatividade e da plástica. Com dignidade. E a componente cidadania deve fazer parte da formação e da postura de todos nós.


LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)

- Ruy Ohtake. Gustavo Lourenção, Quem. Divulgação.

- Ohtake Cultural. São Paulo (SP). Ruy Ohtake Arquitetura e Urbanismo. Divulgação.

- Hotel Unique. São Paulo (SP). Divulgação.

- Pavilhão da Feira Internacional de Osaka, Japão, 1970. Croquis. Paulo Mendes da Rocha. Colaboração de Flávio Motta, Júlio Katinski, Rui Ohtake e Jorge Caron.

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NOTAS:

(1) Entrevista concedida a Cláudio Cruz e Vanessa Lins. Publicado originalmente no Arquitetura Brasil, em 11 de setembro de 2002.

(2) Sobre Ruy Ohtake consultar:
Ruy Ohtake Arquiteturas Móveis. Julio Katinsky, Olivio Tavares de Araújo. São Paulo: Brastemp, 1996.
La Arquitectura de Ruy Ohtake. Madrid: Celeste Editorial, 1994.
SEGRE, Roberto. Ruy Ohtake: contemporaneidade da arquitetura brasileira. São Paulo: ABCP, 1999.


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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. Surpresa e Ousadia. Heliográfica, online, Recife. Outubro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].