domingo, 12 de agosto de 2007

Modernismo bom selvagem (1)

Lançado em 1996, na Suíça, Le Corbusier, der edle Wilde. Zur Archäologie der Moderne (Le Corbusier, o bom selvagem. Por uma arqueologia da modernidade), o livro de Adolf Max Vogt, foi traduzido recentemente para o francês e para o inglês (2). Essa obra despertou interesse dos estudiosos da vida e do trabalho do arquiteto franco-suíço para uma questão óbvia mas nem sempre tratada com a profundidade merecida: o conhecimento dos primeiros anos de formação que revele pormenores do nascedouro das idéias que defiram o vocabulário formal das obras de um dos arquitetos que exerceu tanta e tão duradoura influência no mundo, notadamente no Brasil do século XX.

Como não há previsão de lançamento do livro no Brasil devemos,por enquanto, nos contentar com a leitura das edições européias. Vogt é autor de vários trabalhos sobre teoria e história da arte e da arquitetura, é fundador do Centro para a História da Teoria da Arquitetura da Escola Técnica Federal da Suíça, em Zurique (Eidgenössische Technische Hochschule). Arqueólogo a seu modo, ele analisa o ambiente físico e educacional dos primeiros anos de desenvolvimento do jovem Charles-Edouard Jeanneret. Utilizando-se de documentos datados dos anos anteriores a 1930 negligenciados por outros pesquisadores, o autor nos apresenta um trabalho considerado um marco diferenciador nas pesquisas que envolvem a figura do arquiteto. Vogt está interessado em saber, entre outras coisas, a origem do vocabulário dos projetos de Le Corbusier, como se formou seu senso estético e a sua paixão pelas construções elevadas do solo, numa trajetória e numa escala de tempo que inicia na pré-história e chega à sociedade industrial. Os pilotis são soluções estruturais com origens antigas (pré-históricas, egípcias, greco-romanas) as quais inspiraram o arquiteto modernista que, auxiliado pelas inovações da técnica construtiva e estrutural do começo do século XX, o concreto-armado, criou colunas inteiramente despidas de ornamentos de onde preserva-se apenas o caráter estrutural com desempenho otimizado.

Vogt, interpreta os pilotis de Le Corbusier como uma derivação das palafitas pré-históricas dos lagos suíços; outro autor, Vikramaditya Prakash em Chandigarh’s Le Corbusier (3), transfere essa derivação para a cultura indiana, entretanto, sendo as palafitas uma invenção que não se pode creditar a uma única civilização pois é comum a inúmeros povos com circunstanciais adaptações, a origem dos pilotis corbuseanos podem ser igualmente associada à certa arquitetura popular encontrada no Brasil. Pesquisando a arquitetura brasileira, no período anterior aos anos de 1930, tomei conhecimento de um fato que ilustra a proximidade de Le Corbusier com o Brasil, particularmente com o Recife. Foi publicado no Arquitetura Brasil (4) e na revista Continente Multicultural (5) uma entrevista com Cícero Dias intitulada Uma Anedota Gentil, concedida em 1997, apenas cinco anos antes da morte do pintor pernambucano. Nela é contada a história do projeto de uma residência encomendada pelos Santos Dias, a família do pintor, a Le Corbusier, para ser construída no Recife, entre 1926 e 1929. Essa história não foi uma descoberta de material inédito pois não era inteiramente desconhecida dos leitores, apenas era uma fonte raramente consultada pelos pesquisadores de arquitetura, mais uma fonte negligenciada. Mário de Andrade havia noticiado o fato em artigo do Diário Nacional (6), em 1929, às vésperas da chegada de Le Corbusier ao Brasil, quando ele já era conhecido como uma das maiores personalidades da arquitetura modernista que então se fazia na Europa.

A história da Casa Santos Dias é, resumidamente, a seguinte: Cícero, estudante de arquitetura na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro desde 1925, tomou conhecimento da obra de Le Corbusier, possivelmente, com a leitura da revista L´Espirit Nouveau e com as discussões das idéias sobre a arquitetura modernista que aconteciam na Escola. Estas idéias influenciaram o jovem acadêmico e este deve ter convencido a família a construir uma casa modernista no Recife, às margens do Capibaribe. Para que o arquiteto tivesse uma idéia do local onde a casa iria ser erguida foram providenciadas fotos da cidade que foram enviadas à Europa e, a partir delas, ele pôde fazer um estudo. Além dos aspectos naturais da cidade essas fotos mostravam o ambiente construído, inclusive as palafitas construídas sobre as águas, habitações até hoje existentes mas completamente em desacordo com os padrões mínimos de habitabilidade. Nelas se observa o partido estrutural que eleva a habitação acima do nível da água e permite deixar a superfície livre. Era sobre esses princípios que o arquiteto estava trabalhando desde 1922, quando projetou as casas Citrohan nas quais aparecem os pilotis pela primeira vez, até 1929 quando projetou a casa Savoye, tida até hoje como uma das obras-primas da arquitetura modernista porque nela estão presentes os cinco pontos formalizados por Le Corbusier: construção sobre pilotis, terraço-jardim, planta e fachada livres da estrutura e janela em fita. Foi exatamente neste período de ebulição criativa e de formulação de princípios que ele tomou conhecimento das palafitas do Recife.


No Nordeste do Brasil as palafitas são típicas dos extratos sociais populares e tanto podem ser erguidas inteiramente sobre as águas como podem ser assentados em terrenos inundáveis; o partido estrutural de pilotis em terra firme e seca é raro na arquitetura da região embora possa ocorrer em áreas infestadas por insetos e onde exista perigo de animais selvagens. A construção de uma habitação burguesa (sic) sobre palafitas é uma proposição inteiramente modernista com a qual as habitações populares guardam íntimo parentesco; a casa dos Santos Dias do Recife poderia ter sido um elo exemplar de ligação entre a arquitetura popular regional e o modernismo racionalista e erudito de Le Corbusier, modelo de uma arquitetura com toques rousseaunianos, em perfeito entrosamento com a cultura e o meio ambiente local. Infelizmente essa casa não foi construída nem no Recife nem em lugar algum, Cícero Dias atribuiu a não realização dessa obra aos elevados custos decorrentes do cálculo e da tecnologia que na época teria de ser empregada para a sua realização em concreto armado. Dela foi feito apenas um estudo, um croquis, segundo o mesmo testemunho. Uma casa que em vez de estar elevada sobre um gramado com um automóvel estacionado sob a estrutura, como a casa Savoye, estaria elevada sobre as águas do Capibaribe com uma lancha estacionada sob a estrutura.

As palafitas são uma solução estrutural das mais primitivas que existem, de difícil execução e que requer manutenção freqüente. Sem requinte ornamental, antes de tudo prevalece o instinto de sobrevivência. Trabalha contra um ambiente natural (e às vezes social) extremamente hostil. Os materiais são rústicos e são sempre aqueles que se encontram mais à mão. As palafitas não escaparam a tantos pesquisadores sociais, como Gilberto Freyre, em Sobrados e Mocambos (7). A obra de Freyre vem à lembrança porque ela analisa consistentemente a europeização do Brasil e se podemos admitir que o Brasil europeizou-se, o contrário é admissivel: o mundo e, por extensão, Le Corbusier abrasileiraram-se não apenas com o reconhecimento internacional da arquitetura erudita que aconteceu anos depois com o trabalho do grupo de modernistas que reunia, entre outros, Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Eduardo Reidy, mas também pela expressão da cultura popular que também foi pródiga no século XX.

O último levantamento realizado na Fondation Le Corbusier acerca dos documentos lá guardados sobre o Brasil foi feito entre 1986 e 1987. Desse levantamento resultou o livro Le Corbusier e o Brasil (8). Em 1987 foi comemorado o centenário de nascimento do arquiteto e a Fondation deu início a uma reclassificação dos documentos do arquivo. Lamentavelmente nem o citado livro nem o trabalho de reclassificação levaram em conta o testemunho de Mário de Andrade, em 1929, para fixar de forma mais pormenorizada os fatos que anteciparam a primeira viagem de Le Corbusier ao Brasil.
Fora a notícia de Mário de Andrade e a entrevista de Cícero Dias, não foi encontrada outra evidência dessa obra não-construída. O esboço nem as fotos do Recife enviadas para o ateliê do arquiteto jamais foram localizados. Caso sejam encontrados, será fechada com maior riqueza documental essa lacuna na história das relações entre Le Corbusier e o Brasil, com um fato que é um antecedente da fusão que permitiu à arquitetura brasileira, anos mais tarde, firmar-se mundialmente como uma das mais criativas e promissoras. São pequenos fatos como estes que fazem entender como o modernismo aglutinou valores tão dispares e, ao mesmo tempo, tão comuns a tantos povos e culturas. Torna-se um fato cada vez mais interessante essa Casa Santos Dias no Recife a par dos novos estudos feitos sobre Le Corbusier, particularmente depois do livro de Adolf Max Vogt.

LEGENDAS DAS ILUSTRAÇÕES (de cima para baixo)
- Capa da tradução para o inglês. Divulgação.
- Musee National Suisse - Balade en préhistoire - scène d'échanges dans un village néolithique, vers 2.700 avant J.-C. - Aquarelle de Brigitte Gubler.
- Palafitas no Nordeste do Brasil. Foto M Vitor.

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NOTAS:
(1) Publicado originalmente em Arquitetura Brasil, 28 de maio de 2004.
(2) VOGT, Adolf Max. Le Corbusier, der edle Wilde. Zur Archäologie der Moderne. Birkhauser Verlag AG, 1996. (Em alemão).
________. Le Corbusier, le bon sauvage. Vers une archéologie de la modernité. In folio, 2003. (Em francês).
________. Le Corbusier, the Noble Savage: Toward an Archeology of Modernism. Cambridge, MIT Press, 1992. (Em inglês).
(3) PRAKASH, Vikramaditya. Chandigarh’s Le Corbusier: The Struggle for Modernity in Postcolonial India. Washington, University of Washington, 2002.
(4) Uma Anedota Gentil. Entrevista de Cícero Dias a Claudio Cruz. Arquitetura Brasil, 28 de março 2003.
(5) Uma Anedota Gentil. Entrevista de Cícero Dias a Claudio Cruz. Revista Continente Multicultural. Ano 3, março 2003, edição nº 27.
(6) ANDRADE, Mário. Táxi e crônicas no Diário Nacional, São Paulo, Duas Cidades/Secretaria de Cultura, 1976, p.161 – 162.
(7) FREYRE, Gilberto. decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.
(8) SANTOS, Cecília Rodrigues dos [et al.]. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela / Projeto Editora, 1987.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Modernismo Bom Selvagem. Heliográfica, online, Recife. Agosto/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

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