segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Uma anedota gentil (1)

O modernismo brasileiro chegou ao ponto final... A última página do modernismo está virada...


Com essas palavras um jornal noticiou no Brasil o falecimento do pintor Cícero Dias, ocorrido em 28 de janeiro de 2003, em Paris, como se um movimento artístico pudesse nascer e morrer como uma pessoa. Se assim fosse, tudo seria bem mais simples de ser explicado e entendido na história da arte.
Nessa nossa época em que alguém precisa decretar o fim de alguma coisa ou propor teoria para tudo, aqui não se pretende nem uma coisa nem outra, apenas contar uma “anedota gentil”, que nem é desconhecida, apenas andava esquecida. Com a morte do pintor convém relembrar o projeto de uma residência encomendada pela família Santos Dias a Le Corbusier, para ser construída no Recife, por volta de 1929.
Cícero era filho de uma família pernambucana que protagonizou um episódio que, se tivesse resultado em obra construída, possivelmente traria outro desdobramento ao modernismo arquitetônico brasileiro. Como até hoje este episódio espera ser devidamente estudado e divulgado, a sua revelação completa pode trazer alguns esclarecimentos sobre as origens da arquitetura moderna brasileira.

Das informações recolhidas sobre este projeto, podemos infeirir que ele já traria para o Brasil preocupações com o contexto, a paisagem e a cultura. Isso configura já uma adaptação do ideário racionalista ao ambiente local, ou seja, são preocupações embrionárias daquilo que, pela historiografia oficial, a arquitetura brasileira só começaria a desenvolver, aproximadamente, uma década depois com Lucio Costa e Oscar Niemeyer sob a orientação do mesmo Le Corbusier no projeto para o Edifício do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro.

Embora a arquitetura só possa ser obra construída, não se deve subestimar os princípios e as idéias que conduzem determinado projeto, é por conta destes princípios que a residência encomendada pela família Santos Dias desperta interesse.
A notícia foi publicada por Mário de Andrade em 1929 na coluna Táxi, do Diário Nacional, de São Paulo. Em 1997 quando Cícero Dias esteve no Recife para uma de suas muitas viagens nostálgicas pude entrevistá-lo. Com pouca memória para relembrar um fato ocorrido há mais de setenta anos, esta entrevista, publicada pela primeira vez na Revista Continente Multicultural confirma e completa com alguns dados a notícia de Mário de Andrade. (2)



Cláudio Cruz: "(...) No entanto uma anedota gentil fazem uns dois anos talvez, se tivesse outro final, faria Le Corbusier nesta viagem encontrar já uma construção dele no Brasil. Infelizmente pararam em meio as negociações entre ele e a família Santos Dias, do Recife, para uma construção de uma casa moderna à beira do Capibaribe. Foi pena. (...)"

O Senhor pode contar mais sobre essa história de Mário de Andrade?


Cícero Dias: (Mostrando várias cartas de Le Corbusier) Eu trouxe isso aqui pra mostrar a vocês a proximidade que eu tinha com ele. Por volta dessa época, de que trata o artigo de Mário de Andrade, ele não veio ao Recife, mas nós, eu e minha família, estávamos com vontade de fazer uma casa de Le Corbusier aqui. Tiramos muitas fotografias da cidade, o Pina, toda essa bacia foi fotografada, a rua da Aurora e uma vista geral de Olinda. Aquelas construções lacustres (sic), casas pobres sem nada. Nesse tempo ele estava trabalhando com os pilotis. Ele pensou em fazer uma casa na beira d'água. Para fazer o que ele tava pensando, uma casa de pilotis na beira do rio era um preço exorbitante, e parou por aí o negócio. Não se fez nada? Ele achou a bacia do Capibaribe-Beberibe uma coisa tão bonita. A vista que se tinha do Cais do Apolo, mais longe Olinda, o mar mais longe. Se recuasse a localização não era a mesma vista e aconteceria, como aconteceu, de passar uma estrada na frente e acabava-se a vista. Então tinha de se fazer na beira do rio.


CC: Que idade tinha o senhor então?


CD: Eu devia ter 19 anos. Era aluno da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, cursando arquitetura, uma turma depois da de Lucio [Costa] e antes da de [Oscar] Niemeyer. Fiz minha exposição em 1929, briguei com os professores e tive de abandonar completamente a arquitetura pela pintura porque o ambiente ficou muito desagradável. O Sr. Alberto Monteiro Aranha era amigo dele, tratamos com ele a possibilidade de fazer a casa sem trazê-lo aqui. Não havia avião, só navio, para não trazê-lo aqui ao Recife. Pegamos um fotógrafo e fez-se o levantamento fotográfico. Nós queríamos com vista para Olinda, para o istmo, para o mar, onde se vê a fortaleza do Brum. Ele se entusiasmou pelos mocambos, pelas construções lacustres. Ora, a construção lacustre era uma coisa primitiva, leve, sem suportar peso nenhum. Na hora de escolher o terreno a prefeitura já tinha uma estrada projetada. Nós ficamos com medo de construir do outro lado da estrada e poderia depois a prefeitura construir qualquer coisa na frente e esconder a vista. Aí a construção só seria interessante dentro do próprio rio porque você poderia estacionar embaixo uma lancha. Só que o terreno não merecia muita confiança porque era lama. Tinha de ser feita uma base de estacas enormes e pesadas. O preço disso foi proibitivo.


CC: O Senhor tem o desenho de Le Corbusier para esta casa?


CD: Não. Ele não fez um projeto. Ele rabiscou. Todo o material que eu tenho dele são essas cartas, isso mostra meu contato pessoal com ele. Pode tirar cópia pra você e ver o que pode aproveitar.


CC: Como é que surgiu a idéia de construir uma casa de Le Corbusier no Recife?


CD: Aí é que tá... Muita coisa, talvez a paisagem... Ele se entusiasmou pelo litoral, pela margem do rio. Ontem fui à Secretaria da Fazenda [do Estado de Pernambuco] e de lá você vê a cidade lembrando muito Amsterdã, São Petersburgo. Um quadro meu chamado Camboa do Carmo que vai ser exposto agora no Rio de Janeiro, pintado na década de 1930, retrata uma praça onde a água do rio ou do mar invade. O Recife possuía uma, que era a Camboa do Carmo, o Rio de Janeiro outra, que era a Praça Quinze, São Petersburgo até hoje tem quatro camboas, o Recife não possui mais porque foram muitos aterros.


CC: Especificou-se a Le Corbusier como vocês queriam a casa?


CD: Era uma casa normal, quero dizer, com três quartos, sala, cozinha, banheiro. Não era coisa grande. Uma casa de proporções burguesas... interessante. As palafitas ele já conhecia, sendo um arquiteto, pois essa é uma habitação da pré-história. Mas o que impressionou foi a paisagem, a mesma paisagem que entusiasmou Maurício de Nassau e a Conservadora do Museu de São Petersburgo que esteve comigo na Secretaria da Fazenda.


CC: Le Corbusier não demonstrou nenhuma preocupação social ao ver as palafitas do Recife?


CD: Eu vou lhe dizer o seguinte, eu não vou responder integralmente o que você tá perguntando, mas eu vou chegar lá... Ele desenhou perto de Marselha um conjunto simples de arquitetura, era uma coisa popular, e foi inabitável. A única coisa social que ele fez. Foi uma dessas máquinas de morar, inabitável. Não sei o que o governo francês fez com aquilo.


CC: O senhor lia a revista L'Espirit Nouveau?


CD: Sim. Le Corbusier queria destruir Paris para fazer avenidas. Ele não gostava de um urbanista francês chamado Agache, aquele que fez um projeto para o Rio de Janeiro, que ele achava um absurdo.


CC: A casa para o Recife teve a participação de algum outro arquiteto?


CD: Não, era ele sozinho, desenhou a lápis. Foi impraticável porque se fizesse a casa recuada, o sujeito defronte construiria outra na frente. Nós queríamos uma casa onde se avistasse Olinda, o istmo, o [bairro do] Recife com o Cais do Apolo, lá na Rua da Aurora, no fim, em Santo Amaro. Tiramos fotografia pra enviar para ele, da Fortaleza do Brum, do Cemitério dos Ingleses. Foi por ali por trás, pensando no lugar mais apropriado para construir a casa, porque já se pensava no futuro.


CC: Essas fotos da cidade foram entregues a Le Corbusier?


CD: Eu entreguei tudo a ele. Dei tudo a ele em 1928 [o ano exato foi 1929] no Rio de Janeiro. Ele pegou e ficou com tudo aquilo. Ele era meio maluco, ficou com aquilo andando de cima pra baixo.


CC: Nos arquivos da Fundação Le Corbusier, em Paris, nada consta em relação a esta casa no Recife.


CD: Não tem nada... Você podia me fazer um favor? Quando eu estiver em Paris, em maio ou junho, me manda uma cópia dessa notícia de Mário de Andrade pra eu procurar na Fundação Le Corbusier e reparar esta lacuna, mostrar isso e procurar saber se eles ainda têm as fotografias.


CC: Enviarei sim. Essa pesquisa precisa ser feita.


CD: Sim, pois não se pesquisa nada. A prova é que, por exemplo, o nome do Sr. Alberto Monteiro de Carvalho lá só é mencionado uma vez ou duas. É preciso que alguém vá à Fundação pesquisar, é possível que o material esteja lá, o que falta é dinheiro para essas pesquisas, essas fundações nunca têm dinheiro. Ele levou uma quantidade de fotografias enorme. Mas como eu disse, o temperamento dele não era fácil. Ele era brigão, meio malucão. A toda hora aparecem exposições com os desenhos dele. Com ele eu fiz parte do chamado Grupo Espaço. Nessa Fundação não se menciona nem uma vez o grupo. Era ele, (Fernand) Léger (1881-1955). Na fundação eu procurei o Grupo Espaço e não encontrei. Lá tem muita coisa sobre o Ministério da Educação. Sobre o Recife, nada. Precisamos reparar essa falta.

Resumidamente a história é a seguinte: Cícero Dias, estudante de arquitetura na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, a partir de 1925, toma conhecimento da obra de Le Corbusier, possivelmente com a leitura da revista L´Espirit Nouveau e pelas discussões na Escola. As idéias influenciam o jovem acadêmico e a família decide construir uma casa modernista no Recife, às margens do Capibaribe. Fotografam tudo na cidade e, em 1929, Cícero entrega as fotos ao arquiteto quando este visita o Brasil pela primeira vez, indo ao Rio de Janeiro e São Paulo. A casa foi simplesmente esboçada num papel e nunca foi construída devido aos motivos expostos por Dias.

O esboço nem as fotos da cidade jamais foram localizados, apesar das consultas feitas à Fundação Le Corbusier. Mário de Andrade foi quem primeiro noticiou o fato, mas o episódio foi esquecido por todo esse tempo. O livro Le Corbusier e o Brasil (3), publicado em 1987, fez um grande levantamento na Fundação dos documentos relativos ao Brasil, não há nele nenhuma citação da casa de Le Corbusier no Recife. Caso seja encontrado o tal esboço para a residência Santos Dias, essa lacuna no anedotário do modernismo arquitetônico brasileiro será finalmente preenchida. O texto de Mário de Andrade continua:

"(...) Mas em verdade a arquitetura moderna do que carece não é de pequenas construções e sim de grandes edifícios que a definitivem na consciência social(...)"

Esta carência de grandes edifícios não tardou a ser suprida. Oito anos depois, em 1937, estava em construção o edifício do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. Mas essa história já é bem conhecida de todos.



LEGENDAS DAS ILUSTRAÇÕES (de cima para baixo)
- Cícero Dias e Claudio Cruz. Foto Eduarda Belém.
- Le Corbusier, cerca de 1932. Divulgação.
- Indicação do local da residência da família Santos Dias no Recife, segundo Cícero Dias: (1) Olinda, (2) istmo, (3) Bairro do Recife, (4) Rua da Aurora, (5) Fortaleza do Brum, (6) Cemitério dos Ingleses. Foto Google Earth; Europa Tecnologies; Digital GLobe, 2007.

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NOTAS:

(1) Entrevista concedida em 26 de março de 1997, no Internacional Palace Lucsim Hotel, na Av. Boa Viagem, Recife/PE. Também participaram a Sra. Raymonde Voraz Dias, Eduarda Belém e Hilton Lacerda. Publicado originalmente na Revista Continente Multicultural. Ano 3, março 2003, edição nº 27 e em Arquitetura Brasil, 28 de maio de 2004.

(2) ANDRADE, Mário de. Táxi e Crônicas do Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo, Duas Cidades, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. P. 161-162.

(3) SANTOS, Cecília Rodrigues dos [et al.]. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela / Projeto Editora, 1987.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. Uma Anedota Gentil. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

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