sábado, 15 de setembro de 2007

Urbanização de favelas no Brasil (1)

O arrazamento de mocambos, favelas e cortiços está na consciência de todos e o resultado disso são já patentes. (2)



Em setembro de 2002 o Brasil participou da 8ª edição da Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza. Sob a curadoria das arquitetas Elisabete França e Glória Bayeux – convidadas pelo então presidente da Fundação Bienal de São Paulo, arquiteto Carlos Bratke – o pavilhão que representou o país no evento abordou um dos temas mais atuais da arquitetura nacional: a urbanização de favelas. É sobre o assunto que Elisabete França fala em entrevista.

Arquitetura Brasil: Na década de 40, o “arrazamento” dos aglomerados habitacionais de periferia – cortiços, favelas e palafitas - era a solução mais aceita para o controle das ocupações clandestinas. A partir de quando, efetivamente, as favelas brasileiras começaram a ser vistas como núcleos habitacionais definitivos, com dinâmica própria e perfeitamente passíveis de intervenções urbanísticas para o seu melhoramento?
Elisabete França: A sociedade brasileira sempre teve dificuldades para aceitar as ocupações “informais” que surgem nas cidades, pois são consideradas bolsões de pobreza, insalubridade, sujeira, perigo e cujos padrões estéticos fogem àqueles “aceitáveis”. Favelas, cortiços, palafitas, entre outras, são entendidas como áreas marginalizadas e não como alternativa de moradia para aquelas famílias que não têm acesso ao mercado formal de habitação e serviços públicos. A ocupação urbana brasileira vem repetindo a clássica fórmula “casa grande – senzala”, ou seja, os que têm acesso ao modelo habitacional regularmente constituído e aqueles que não têm, porém cuja proximidade de localização é que permite o funcionamento das redes econômicas que movem a cidade e o país.
Assim durante muito tempo, a demolição e destruição desses bolsões sempre foram a proposta mais adotada para a superação do “problema”. Como conseqüência da implantação de tal proposta, outros bolsões foram aparecendo em regiões cada vez mais distantes, porque a demolição e destruição das favelas não resultaram no desaparecimento daqueles que ali viviam e que necessariamente buscaram novas alternativas de moradia em outras áreas “informais”.
A década de 60 foi o grande momento da política de desfavelização, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Favelas eram removidas na sua totalidade, com a conseqüente transferência das famílias para os imensos conjuntos habitacionais implantados distantes das cidades. Época da construção do emblemático Conjunto Habitacional Cidade de Deus. Já na década de 80, com o fracasso do SFH/BNH, o avanço do processo de democratização do país, a participação crescente dos moradores nos processos decisórios relativos às questões da moradia, e uma série de outros fatores, consolidou-se, cada vez mais, a aceitação das “áreas informais” como alternativa habitacional para aqueles excluídos do mercado formal da habitação.
Felizmente nos dias atuais, a urbanização de favelas, a recuperação de cortiços nas áreas centrais e outras políticas públicas, que têm como objetivo central, a manutenção do morador no local e o reconhecimento do patrimônio construído pelas famílias, através de um grande esforço autônomo, à margem do patrocínio oficial, já é bastante mais bem aceita pela sociedade brasileira.

ArqBr: Até os anos 70, as políticas públicas visavam a relocação dos ocupantes das áreas “marginais” para conjuntos habitacionais construídos em localidades distantes dos centros. Em sua opinião, por que demorou-se tanto para perceber que o aproveitamento da estrutura já existente seria uma solução mais viável? De quem partiu a idéia de urbanizar favelas?

EF: A aceitação da solução “urbanização de favelas” pela sociedade brasileira ocorreu de forma gradativa e acompanhou o processo de democratização do país, embora não se trate ainda de um consenso. Os processos decisórios se tornaram mais democráticos, a população passou a participar de fóruns de decisão sobre o seu futuro e possibilidade de escolha de alternativas habitacionais, etc. A participação dos arquitetos e urbanistas foi decisiva neste caminho de aceitação destes novos padrões, quando estes passaram a atuar decisivamente nessa área. Creio que não existe um “autor” da idéia da urbanização de favelas, devemos entender como construção de um modelo de intervenção, alternativo aos padrões estabelecidos pelo SFH/BNH; porém as experiências do grupo do Carlos Nelson [Ferreira dos Santos], pessoalmente para mim, se constituíram em um ponto de partida na década de 80.

ArqBr: Após a urbanização de uma favela, há alguma mudança significativa nos hábitos da população? E a receptividade dos moradores da área? Qual a importância socialmente transformadora da iniciativa?
EF: A urbanização de uma favela representa uma melhoria significativa nas condições de vida da população que nela vive. Primeiro porque responde às necessidades básicas da comunidade (implantação de redes de infra-estrutura, sistema viário, etc); em seguida responde a necessidades não necessariamente básicas, porém de efeito diferenciado posto que pode reforçar os laços comunitários pré-existentes (implantação de ares de lazer, equipamentos comunitários, etc).
Conseqüentemente, resulta em uma mudança significativa nos hábitos da população. Esta passa a ser co-responsável pela manutenção das melhorias implantadas e como tal tem como obrigação incentivar a necessária mudança de hábitos culturalmente arraigados. Não é uma tarefa simples, porém costuma-se dizer que é a fase de transformação do morador das favelas em cidadão que responde pela construção de seu futuro, respondendo por direitos e deveres inerentes a essa nova condição.
ArqBr: Sabe-se que em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador iniciativas dessa natureza já foram feitas, conforme podemos apreciar na exposição. A Sra. tem alguma notícia de iniciativa semelhante no Recife e em outras cidades brasileiras?

EF: A urbanização de favelas é um processo que vem sendo adotado em várias cidades brasileiras. As experiências apresentadas na Bienal de Veneza sintetizam esse longo aprendizado e foram selecionadas por comporem um mosaico do que vem sendo realizado no país. Há uma série de grandes projetos em implantação ou já implantados em Belo Horizonte, Fortaleza, Vitória, Santo André, Diadema, entre outras cidades brasileiras.
No caso particular do Recife, há uma cultura profissional relacionada ao tema bastante avançada, ou seja, um grande número de profissionais dedicados à busca das melhores soluções para o trato das áreas informais. A cidade de Recife foi pioneira na proposição das zonas de interesse social, contemplando áreas de ocupação informal e segue buscando as melhores soluções para o tema.

ArqBr: Por menor que seja, há uma preocupação estética nos projetos dessa natureza e não há apenas preocupações relativas os aspectos funcionais da habitação e do espaço urbano. Especificamente neste caso, quais são os parâmetros que mediam as relações entre forma e função?

EF: O projeto de urbanização de favela não se diferencia de outros projetos em relação a menor ou maior preocupação estética. O processo de elaboração do projeto responde a uma problemática existente, para o qual se adota um partido de intervenção que resulta das necessidades apresentadas por um cliente coletivo. No projeto são observadas as dificuldades a serem enfrentadas, as necessidades a serem atendidas (em especial as mais imediatas, tais como, redes de infra-estrutura básica, sistema viário e serviços públicos), e as potencialidades a serem exploradas (sítio, áreas vazias, espaços comunitários reconhecidos pela comunidade, culturas locais, etc).
Este conjunto de informações será utilizado na elaboração do projeto, ao qual se somará a experiência profissional, o domínio de técnicas construtivas, a capacidade de proposição de materiais e equipamentos adequados e a capacidade criativa do arquiteto. Daí resulta um projeto que poderá ter maior ou menor preocupação estética, e que será o diferencial entre os vários projetos.
ArqBr: O tema da Bienal é NEXT (em português, próximo, porvir, futuro). Segundo o catálogo da mostra brasileira, ela é constituída por dois módulos: o primeiro módulo é uma leitura da realidade desses assentamentos; o segundo são exemplos de intervenções que caracterizam a atuação dos arquitetos. Nestes módulos estão expostas as situações pretéritas e presentes. Onde está o futuro (NEXT)?
EF: A mostra brasileira apresentou a situação das favelas antes e depois das intervenções, de modo a permitir ao visitante, a partir da comparação entre as duas realidades, constatar o upgrading resultante de um projeto dessa natureza. O futuro está na reflexão sobre o tema escolhido para representar o país, tema esse que sofreu certas resistências por parte de setores representativos dos setores cultural e arquitetônico, que preferiam ver a arquitetura brasileira “melhor” representada.
Temos um grande desafio pela frente nos próximos anos ou décadas - propor e implantar soluções para os milhões de brasileiros que não têm acesso à moradia e aos serviços básicos da cidade – esse é um dos grandes temas da arquitetura e do urbanismo. A exposição mostra que os arquitetos brasileiros sabem como fazer e o fazem bem; trata-se agora de ampliar a escala de intervenção para que abarque um conjunto significativo de áreas informais. Reproduzir por todo país a escala dos Projetos Favela-Bairro, Guarapiranga, Ribeira Azul/Alagados, entre outros. Esse é o futuro (NEXT) recomendável.
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LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)
- Programa de Saneamento Ambiental da Bacia de Guarapiranga. Secretaria de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras do Estado de São Paulo . Divulgação.
- Programa Favela Bairro. Prefeitura do Rio, Secretaria Municipal de Habitação. Divulgação.
- Programa Ribeira Azul. Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia. Divulgação.
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NOTAS:
(1) Entrevista concedida a Cláudio Cruz e Vanessa Lins. Publicado originalmente em Arquitetura Brasil, em 17 de janeiro de 2003.
(2) GOODWIN, Philip. Construção Brasileira, arquitetura moderna e antiga (ed.bilíngue). Nova York: The Museum of Modern Art, 1943. P. 96.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Urbanização de Favelas no Brasil. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

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