sexta-feira, 14 de setembro de 2007

O Pritzker e seus agraciados (1)




A arquiteta Zaha Hadid (1950) recebeu na última segunda-feira, dia 31 de maio, o prêmio Pritzker 2004, tido como o mais importante da arquitetura mundial, em cerimônia realizada no auditório do Museu Hermitage, em São Petersburgo, Rússia.


Instituído pela Hyatt Foundation Thomas Pritzker, sediada em Los Angeles, Califórnia, EUA, a fundação começou a distribuir os prêmios em 1979, quando foi criada, sendo o primeiro agraciado o arquiteto americano Philip Cortelyou Johnson (1906-2005), notabilizado pelos óculos de aro grosso e como um dos ideólogos do International Style surgido nos anos de 1930 (os outros eram Alfred Barr Junior e Henry-Russell Hitchcock). Na sua longa carreira foi autor de inúmeras obras, entre elas e o AT&T Corporate Headquarters (em parceria com John Burgee), em Nova York, tido como o primeiro arranha-céu pós-moderno da história, construído entre 1978 e 1984, é reconhecido no skyline da cidade como aquele coroado por um enorme frontão interrompido. Em 1990, os japoneses adquiriram com dinheiro americano o imóvel que hoje se chama Sony Plaza. Miguel Forte (1915-2002) recordou em entrevista à revista Projeto Design (2) o encontro, nos anos de 1940, entre dele e Jacob Ruchti com Johnson em seu escritório de Nova York onde havia uma poltrona folheada a ouro em estilo renascentista francês, um objeto que estaria desde aquela época antecipando a composição do coroamento do edifício AT&T. Com a entrega do primeiro Pritzker a Johnson tornou-se difícil entender a justificativa da Fundação de premiar arquitetos que deram grande contribuição à arquitetura moderna.

Mas a Fundação surpreende, em 2003 o Pritzker foi entregue ao arquiteto dinamarquês Jørn Utzon (1918), cujo projeto da Casa de Ópera de Sidney o fez conhecido em todo o mundo. Utzon recebeu o prêmio em cerimônia realizada na Academia Real de Belas Artes de San Fernando, em Madri, Espanha, ocasião em que embolsou 100 mil dólares. Na lista dos agraciados está também o brasileiro Oscar Niemeyer (1907), que em 1988 dividiu o prêmio com o americano Gordon Bunshaft (1909-1990). Niemeyer e Utzon são arquitetos da periferia cultural do ocidente, o primeiro do mundo superdesenvolvido, o segundo do mundo subdesenvolvido, ambos serão sempre lembrados por terem integrado a arquitetura à paisagem e à cidade pelo seu valor e expressão escultórica.

A cada ano a cerimônia realiza-se em um país diferente e já foi entregue na Inglaterra, Japão, Itália, México, República Tcheca, França, Alemanha, Israel e, evidentemente, nos Estados Unidos, onde a importância que se dá à premiações é assunto de psicologia social. Embora a déia de premiar os que se destacam na sociedade não seja uma invenção americana, eles adotaram como se fosse uma instituição própria e para adquirir o caráter típico local foi superdimensionada, como fizeram com os edifícios de múltiplos pavimentos, o lixo ambiental e o cinema (que também não são invenções deles). Terra das patentes, o que é idéia original americana, promove notoriedade e mãos sujas, é a Calçada da Fama, onde figuras ilustres deixam suas marcas no cimento fresco. Essa devia ser a premiação para os arquitetos, muito mais pra eles do que para qualquer outra figura do star system. Na Calçada da Fama haveria a oportunidade primeira e única de alguns arquitetos porem a mão na massa.

Nos últimos anos a entrega do prêmio tornou-se absolutamente desinteressante. O anúncio, no início desse ano, que o prêmio seria concedido a Hadid e no Hermitage de São Petersburgo foi uma manobra com o objetivo de fazer o prêmio receber mais atenção do público reticente. Essa foi a primeira ocasião que o Hermitage serviu de palco para a entrega do Pritzker, tido como o Nobel (ou o Oscar?) da Arquitetura. O Hermitage de São Petersburgo, como a antiga Mesopotâmia, região de onde veio Hadid, é também um santuário de relíquias; a diferença é que as da Mesopotâmia testemunham o nascimento da civilização enquanto as de São Petersburgo revelam apenas o apreço pelo empilhamento que se não é o que levou a civilização ao seu ocaso é o que a fez tão feia. Depois da queda do regime comunista, a cidade imperial e seu patrimônio tornaram-se uma referência simbólica da nova classe que ascendeu ao poder no país, uma espécie de máfia neoczarista. Quem assistiu ao filme Arca Russa (Russkij Kovcheg, 2002), dirigido por Aleksandr Sokurov, tem uma idéia aproximada da situação. Os dirigentes e a inteligentsia local cultuam o mesmo estilo pré-revolucionário num país economicamente decadente, numa São Petersburgo agora famosa como capital criminal, centro do contrabando e narcotráfico da Federação Russa.

Essa é a primeira vez em que uma mulher é agraciada com o prêmio. Zaha Hadid é árabe, nasceu em Bagdá, Iraque. Obviamente não mora lá. Cidadã britânica, está radicada em Londres desde o início dos anos de 1970, cidade onde estudou arquitetura e formou-se na Architectural Association, em 1977, tendo antes estudado matemática na Universidade Americana de Beirute, no Líbano, em 1971. Na cerimônia de entrega do prêmio Hadid não agradeceu a Alá, mas lembrou da sua condição de mulher árabe e da importância dessa premiação para incentivar outras, como ela, a tentar alcançar sucesso e fama. Difícil uma mulher conseguir tanto vivendo no Iraque, na Tchetchênia ou em qualquer outro país mulçumano. Hadid finalmente vê realizarem-se na Europa, Estados Unidos e Japão seus projetos que durante muito tempo pareciam impossíveis de serem realizados mas adequavam-se muito bem a exibições de arte abstrata. Os projetos só saíram do papel nos últimos dez anos, vários ainda estão em obras. Premiada aos 54 anos, ela pode ser considerada uma arquiteta com poucas obras construídas, mas com uma fama superior às realizações. Conhecida pelos projetos desconstrutivistas, claramente influenciados pela vanguarda russa dos anos de 1920, notadamente Kasemir Malevich (1878-1935) e El Lisitsky (1890-1941), o primeiro ligado ao movimento Suprematista e o segundo ao movimento Construtivista, Hadid é uma arquiteta cuja importância ainda está por ser comprovada, não como exceção, um exotismo extravagante ou como uma contribuição teórica valiosa, mas como algo que se insira na história da arquitetura e deixe descendência.

Ela pode dar-se por realizada pois já construiu mais do que seus maiores inspiradores, Malevich e El Lisitsky. O presidente da Fundação Hyatt Thomas J. Pritzker justificou a escolha dizendo que “o trabalho da arquiteta garante um futuro promissor”. Lendo as palavras de Mr. Pritzker se pode erroneamente pensar que o prêmio é um estímulo para jovens arquitetos, o valor do premio é simbólico para quem nesse esquema está fadado ao sucesso. O presidente do júri, Lord Rothschild, comentou que ao mesmo tempo em que Hadid desenvolve os trabalhos teóricos, acadêmicos e exerce a profissão, ela assume e declara sua devoção ao modernismo. Tudo perfeito enquanto Bagdá dispensa apresentação. Não há um dia em que a cidade não figure na imprensa devido à guerra que os Estados Unidos estão fazendo pelo petróleo, pouca importância é dada aos tesouros arqueológicos que desaparecem lá e reaparecem em coleções particulares nos EUA e na Europa, é a pilhagem e rapinagem que sempre acontecem nas guerras imperialistas, dos Cesares a George Bush. No Hermitage a solenidade deve ter sido supimpa e, para atiçar a curiosidade dos que ficaram de fora e dos sempre cúmplices mass media, os organizadores jogaram um shador sobre a festa, o que colaborou com um adicional glamour diáfano e uma certa fantasia mítica, convenientes para a ocasião, nem secreta nem pública, restrita a uns poucos convidados mas transmitida pela internet.

Durante esses 25 anos de premiação a Hyatt Foundation namora e casa um arquiteto diferente a cada ano e assim vai ficando, ela mesma, cada dia mais virgem, sem que o seu defloramento se converta em benefício à arquitetura, mas em benefício próprio e dos personagens envolvidos. E se o arquiteto premiado nesse ano não foi lá grande contribuição ao desenvolvimento da arquitetura sempre haverá a expectativa do próximo ano, é disso que vivem as donzelas (3).
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LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)
- Medalha do prêmio Pritzker de Arquitetura. Divulgação.
- Philip Johnson. Foto: Bill Pierce, Time & Life Pictures, Getty Images.
- Zaha Hadid. Foto: Steve Double.

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NOTAS:
(1) Publicado originalmente em 04 de junho de 2004 no Arquitetura Brasil com o título O prêmio Pritzker e seus agraciados.
(2) Projeto Design. São Paulo: Arco Editorial. Edição 262, Dezembro 2001.
(3) Veja a lista completa dos premiados no site The Pritzker Architecture Prize.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. O Pritzker e seus agraciados. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].





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