quarta-feira, 19 de setembro de 2007

São Paulo 450 Anos (1)

Não é em São Paulo que se deve procurar uma contribuição prática válida para o urbanismo contemporâneo (...). Seria possível consolar-se com isso se a falta de criatividade nesse setor ao menos tivesse contribuído para proteger os vestígios do passado, mas não aconteceu nada disso, muito pelo contrário: em parte alguma a fúria destrutiva foi exercida com maior constância (...) (2).



Quais as imagens que se tem, hoje, da cidade de São Paulo quando ela completa 450 anos? Imagem não é tudo mas é o bastante quando se sabe que do passado só elas restaram. A cidade viveu um excepcional crescimento econômico, demográfico e profundas mudanças urbanísticas em sua história, as imagens de São Paulo hoje são inúmeras e parciais que não mostram nada além de pontos focais, diminutos diante de sua complexidade. Uma imagem que a mostre inteira só é possível em escala regional, pois esta é a única megalópole brasileira, com mais de dez milhões de habitantes.
São mais de quatro séculos contados desde o longínquo dia 25 de janeiro de 1554 quando os padres jesuítas chegaram e se estabeleceram no planalto onde iniciaram as atividades de catequese dos índios. Nesse dia a igreja comemora a conversão do Apóstolo Paulo ao cristianismo, a cidade homenageia um convertido, em São Paulo todos são paulistas.
O Colégio Jesuíta de Piratininga começou a funcionar em 1556, era uma construção em taipa ao redor do qual iniciou-se a edificação das primeiras casas que deram origem à cidade, elevada a vila já em 1560. São Paulo possuiu desde o seu início a característica do urbanismo português de ocupar os terrenos altos, mais seguros, secos, salubres e deixar as partes baixas desocupadas, como são exemplos semelhantes Olinda, Salvador e o Rio de Janeiro. Da primeira construção até o século 19, a cidade permaneceu isolada, no meio do caminho para o sertão brasileiro, durante todos esses séculos, a "língua geral", de base tupi-guarani, era mais usada em São Paulo do que o português. Era uma parada no caminho dos bandeirantes e demais viajantes que deixavam o litoral em busca do sertão brasileiro, foi neste caminho de viajantes que D. Pedro I decidiu pela independência do Brasil, em 1822.

Em 1711 a vila foi elevada à categoria de cidade, ainda que ela não apresentasse significativo progresso econômico e a população, em algumas ocasiões até decresceu. Em 1827 o a cidade foi escolhida para receber a academia de direito, o que lhe deu importância cultural pela primeira vez. À margem dos ciclos econômicos da colônia (agricultura e mineração), São Paulo só veio a ter importância a partir do fim do século 19, com os capitais acumulados na lavoura do café e com a posterior industrialização. Nessa época, o centro histórico, situado nas cercanias da elevação próxima à confluência dos rios Anhangabaú e Tamanduateí, onde a cidade surgiu, ficou pequeno devido ao crescimento demográfico.

Em pouco tempo tornou-se a maior cidade do interior do Brasil, uma mudança na ocupação do território brasileiro que inverteu a tendência de ocupar apenas o litoral e deixar o interior como terra icógnita; um marco na passagem da condição de país agrícola para país industrializado, de população predominantemente rural para população urbana. Seu salto econômico foi possibilitado pela atividade cafeeira cuja exportação chegou a representar mais de 70% do total brasileiro. Depois de 1930, a economia cafeeira deu lugar à industria como gerador de riquezas. Planos e melhorias urbanas sucederam-se. Novos bairros surgiram, numa estrutura urbana desarticulada, em várias ocasiões comparada a uma colcha de retalhos. Novas vias foram abertas para desafogar um trânsito que não deixou nunca de pedir cada vez mais áreas de circulação.



A cidade dos brasileiros convertidos abriga desde o final do século 19 uma grande quantidade de imigrantes que lhe deu feição própria, notadamente italianos e japoneses, mas há inúmeras outras nacionalidades, como sírios, libaneses e mais recentemente coreanos e latino-americanos de várias procedências. Considerando-se a migração interna, a quantidade de nordestinos foi a mais significativa, diz-se que São Paulo é a maior cidade japonesa fora do Japão e a maior cidade nordestina fora do Nordeste.
É sobretudo uma cidade de grandes contrastes, onde convivem lado a lado o seu progresso e sua incapacidade de superar os próprios problemas. Onde a iniciativa privada foi a promotora do desenvolvimento e o Estado ocupou funções secundárias. Nesta posição, as iniciativas públicas sempre foram insuficientes para prever e remediar os problemas urbanos e a iniciativa privada não assumiu esse ônus.
No século XX São Paulo ganhou e perdeu importância econômica, hoje seu forte está no setor de serviços, sua produção industrial corresponde a 9,4% da produção do país, é a capital de um estado que é hoje o maior pólo de negócios da América Latina, concentrando 1/3 de todos os investimentos privados realizados no território nacional, onde se produz 34% do PIB industrial brasileiro, segundo dados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp. As estatísticas da atividade econômica são ainda mais impressionantes quando se constata que o dinheiro abundante não soube, ou não quis, comprar uma boa arquitetura e urbanismo. Neste quesito, São Paulo é um exemplo a ser evitado.

Nesta data comemorativa, em que o Presidente da República foi à cidade inaugurar uma fonte multimídia no parque Ibirapuera, é de se lamentar que viaje tanto para tão pouco, a fonte é tão simbólica como o Independência ou Morte que só Pedro Américo viu e retratou em 1888. A cidade construída sem bom senso, não teve a felicidade de receber de presente nada que lhe fosse mais útil do que uma fonte banal quando ainda lhe falta um plano urbanístico ou uma obra realmente importante, de interesse majoritário para a sua população. Entretanto, não se deixa de comemorar nem de compartilhar com os paulistanos a legítima esperança de que os problemas que desqualificam São Paulo possam ser superados a tempo para usufruto das próximas gerações.


LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)
- Planta da Imperial Cidade de São Paulo pelo Capitão de Engenheiros Rufino J. Felizardo e Costa. 1810.
- Vista aérea de São Paulo. Foto Jefferson Pancieri.
- Avenida Sumaré. Gregório Gruber, 1989.
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NOTAS:
(1) Publicado originalmente em
Arquitetura Brasil, em 23 de janeiro de 2004.
(2) BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. Perspectiva, 1991. P. 333.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. São Paulo 450 Anos. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [formato dia/mês/ano].

sábado, 15 de setembro de 2007

Urbanização de favelas no Brasil (1)

O arrazamento de mocambos, favelas e cortiços está na consciência de todos e o resultado disso são já patentes. (2)



Em setembro de 2002 o Brasil participou da 8ª edição da Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza. Sob a curadoria das arquitetas Elisabete França e Glória Bayeux – convidadas pelo então presidente da Fundação Bienal de São Paulo, arquiteto Carlos Bratke – o pavilhão que representou o país no evento abordou um dos temas mais atuais da arquitetura nacional: a urbanização de favelas. É sobre o assunto que Elisabete França fala em entrevista.

Arquitetura Brasil: Na década de 40, o “arrazamento” dos aglomerados habitacionais de periferia – cortiços, favelas e palafitas - era a solução mais aceita para o controle das ocupações clandestinas. A partir de quando, efetivamente, as favelas brasileiras começaram a ser vistas como núcleos habitacionais definitivos, com dinâmica própria e perfeitamente passíveis de intervenções urbanísticas para o seu melhoramento?
Elisabete França: A sociedade brasileira sempre teve dificuldades para aceitar as ocupações “informais” que surgem nas cidades, pois são consideradas bolsões de pobreza, insalubridade, sujeira, perigo e cujos padrões estéticos fogem àqueles “aceitáveis”. Favelas, cortiços, palafitas, entre outras, são entendidas como áreas marginalizadas e não como alternativa de moradia para aquelas famílias que não têm acesso ao mercado formal de habitação e serviços públicos. A ocupação urbana brasileira vem repetindo a clássica fórmula “casa grande – senzala”, ou seja, os que têm acesso ao modelo habitacional regularmente constituído e aqueles que não têm, porém cuja proximidade de localização é que permite o funcionamento das redes econômicas que movem a cidade e o país.
Assim durante muito tempo, a demolição e destruição desses bolsões sempre foram a proposta mais adotada para a superação do “problema”. Como conseqüência da implantação de tal proposta, outros bolsões foram aparecendo em regiões cada vez mais distantes, porque a demolição e destruição das favelas não resultaram no desaparecimento daqueles que ali viviam e que necessariamente buscaram novas alternativas de moradia em outras áreas “informais”.
A década de 60 foi o grande momento da política de desfavelização, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Favelas eram removidas na sua totalidade, com a conseqüente transferência das famílias para os imensos conjuntos habitacionais implantados distantes das cidades. Época da construção do emblemático Conjunto Habitacional Cidade de Deus. Já na década de 80, com o fracasso do SFH/BNH, o avanço do processo de democratização do país, a participação crescente dos moradores nos processos decisórios relativos às questões da moradia, e uma série de outros fatores, consolidou-se, cada vez mais, a aceitação das “áreas informais” como alternativa habitacional para aqueles excluídos do mercado formal da habitação.
Felizmente nos dias atuais, a urbanização de favelas, a recuperação de cortiços nas áreas centrais e outras políticas públicas, que têm como objetivo central, a manutenção do morador no local e o reconhecimento do patrimônio construído pelas famílias, através de um grande esforço autônomo, à margem do patrocínio oficial, já é bastante mais bem aceita pela sociedade brasileira.

ArqBr: Até os anos 70, as políticas públicas visavam a relocação dos ocupantes das áreas “marginais” para conjuntos habitacionais construídos em localidades distantes dos centros. Em sua opinião, por que demorou-se tanto para perceber que o aproveitamento da estrutura já existente seria uma solução mais viável? De quem partiu a idéia de urbanizar favelas?

EF: A aceitação da solução “urbanização de favelas” pela sociedade brasileira ocorreu de forma gradativa e acompanhou o processo de democratização do país, embora não se trate ainda de um consenso. Os processos decisórios se tornaram mais democráticos, a população passou a participar de fóruns de decisão sobre o seu futuro e possibilidade de escolha de alternativas habitacionais, etc. A participação dos arquitetos e urbanistas foi decisiva neste caminho de aceitação destes novos padrões, quando estes passaram a atuar decisivamente nessa área. Creio que não existe um “autor” da idéia da urbanização de favelas, devemos entender como construção de um modelo de intervenção, alternativo aos padrões estabelecidos pelo SFH/BNH; porém as experiências do grupo do Carlos Nelson [Ferreira dos Santos], pessoalmente para mim, se constituíram em um ponto de partida na década de 80.

ArqBr: Após a urbanização de uma favela, há alguma mudança significativa nos hábitos da população? E a receptividade dos moradores da área? Qual a importância socialmente transformadora da iniciativa?
EF: A urbanização de uma favela representa uma melhoria significativa nas condições de vida da população que nela vive. Primeiro porque responde às necessidades básicas da comunidade (implantação de redes de infra-estrutura, sistema viário, etc); em seguida responde a necessidades não necessariamente básicas, porém de efeito diferenciado posto que pode reforçar os laços comunitários pré-existentes (implantação de ares de lazer, equipamentos comunitários, etc).
Conseqüentemente, resulta em uma mudança significativa nos hábitos da população. Esta passa a ser co-responsável pela manutenção das melhorias implantadas e como tal tem como obrigação incentivar a necessária mudança de hábitos culturalmente arraigados. Não é uma tarefa simples, porém costuma-se dizer que é a fase de transformação do morador das favelas em cidadão que responde pela construção de seu futuro, respondendo por direitos e deveres inerentes a essa nova condição.
ArqBr: Sabe-se que em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador iniciativas dessa natureza já foram feitas, conforme podemos apreciar na exposição. A Sra. tem alguma notícia de iniciativa semelhante no Recife e em outras cidades brasileiras?

EF: A urbanização de favelas é um processo que vem sendo adotado em várias cidades brasileiras. As experiências apresentadas na Bienal de Veneza sintetizam esse longo aprendizado e foram selecionadas por comporem um mosaico do que vem sendo realizado no país. Há uma série de grandes projetos em implantação ou já implantados em Belo Horizonte, Fortaleza, Vitória, Santo André, Diadema, entre outras cidades brasileiras.
No caso particular do Recife, há uma cultura profissional relacionada ao tema bastante avançada, ou seja, um grande número de profissionais dedicados à busca das melhores soluções para o trato das áreas informais. A cidade de Recife foi pioneira na proposição das zonas de interesse social, contemplando áreas de ocupação informal e segue buscando as melhores soluções para o tema.

ArqBr: Por menor que seja, há uma preocupação estética nos projetos dessa natureza e não há apenas preocupações relativas os aspectos funcionais da habitação e do espaço urbano. Especificamente neste caso, quais são os parâmetros que mediam as relações entre forma e função?

EF: O projeto de urbanização de favela não se diferencia de outros projetos em relação a menor ou maior preocupação estética. O processo de elaboração do projeto responde a uma problemática existente, para o qual se adota um partido de intervenção que resulta das necessidades apresentadas por um cliente coletivo. No projeto são observadas as dificuldades a serem enfrentadas, as necessidades a serem atendidas (em especial as mais imediatas, tais como, redes de infra-estrutura básica, sistema viário e serviços públicos), e as potencialidades a serem exploradas (sítio, áreas vazias, espaços comunitários reconhecidos pela comunidade, culturas locais, etc).
Este conjunto de informações será utilizado na elaboração do projeto, ao qual se somará a experiência profissional, o domínio de técnicas construtivas, a capacidade de proposição de materiais e equipamentos adequados e a capacidade criativa do arquiteto. Daí resulta um projeto que poderá ter maior ou menor preocupação estética, e que será o diferencial entre os vários projetos.
ArqBr: O tema da Bienal é NEXT (em português, próximo, porvir, futuro). Segundo o catálogo da mostra brasileira, ela é constituída por dois módulos: o primeiro módulo é uma leitura da realidade desses assentamentos; o segundo são exemplos de intervenções que caracterizam a atuação dos arquitetos. Nestes módulos estão expostas as situações pretéritas e presentes. Onde está o futuro (NEXT)?
EF: A mostra brasileira apresentou a situação das favelas antes e depois das intervenções, de modo a permitir ao visitante, a partir da comparação entre as duas realidades, constatar o upgrading resultante de um projeto dessa natureza. O futuro está na reflexão sobre o tema escolhido para representar o país, tema esse que sofreu certas resistências por parte de setores representativos dos setores cultural e arquitetônico, que preferiam ver a arquitetura brasileira “melhor” representada.
Temos um grande desafio pela frente nos próximos anos ou décadas - propor e implantar soluções para os milhões de brasileiros que não têm acesso à moradia e aos serviços básicos da cidade – esse é um dos grandes temas da arquitetura e do urbanismo. A exposição mostra que os arquitetos brasileiros sabem como fazer e o fazem bem; trata-se agora de ampliar a escala de intervenção para que abarque um conjunto significativo de áreas informais. Reproduzir por todo país a escala dos Projetos Favela-Bairro, Guarapiranga, Ribeira Azul/Alagados, entre outros. Esse é o futuro (NEXT) recomendável.
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LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)
- Programa de Saneamento Ambiental da Bacia de Guarapiranga. Secretaria de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras do Estado de São Paulo . Divulgação.
- Programa Favela Bairro. Prefeitura do Rio, Secretaria Municipal de Habitação. Divulgação.
- Programa Ribeira Azul. Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia. Divulgação.
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NOTAS:
(1) Entrevista concedida a Cláudio Cruz e Vanessa Lins. Publicado originalmente em Arquitetura Brasil, em 17 de janeiro de 2003.
(2) GOODWIN, Philip. Construção Brasileira, arquitetura moderna e antiga (ed.bilíngue). Nova York: The Museum of Modern Art, 1943. P. 96.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. Urbanização de Favelas no Brasil. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

O Pritzker e seus agraciados (1)




A arquiteta Zaha Hadid (1950) recebeu na última segunda-feira, dia 31 de maio, o prêmio Pritzker 2004, tido como o mais importante da arquitetura mundial, em cerimônia realizada no auditório do Museu Hermitage, em São Petersburgo, Rússia.


Instituído pela Hyatt Foundation Thomas Pritzker, sediada em Los Angeles, Califórnia, EUA, a fundação começou a distribuir os prêmios em 1979, quando foi criada, sendo o primeiro agraciado o arquiteto americano Philip Cortelyou Johnson (1906-2005), notabilizado pelos óculos de aro grosso e como um dos ideólogos do International Style surgido nos anos de 1930 (os outros eram Alfred Barr Junior e Henry-Russell Hitchcock). Na sua longa carreira foi autor de inúmeras obras, entre elas e o AT&T Corporate Headquarters (em parceria com John Burgee), em Nova York, tido como o primeiro arranha-céu pós-moderno da história, construído entre 1978 e 1984, é reconhecido no skyline da cidade como aquele coroado por um enorme frontão interrompido. Em 1990, os japoneses adquiriram com dinheiro americano o imóvel que hoje se chama Sony Plaza. Miguel Forte (1915-2002) recordou em entrevista à revista Projeto Design (2) o encontro, nos anos de 1940, entre dele e Jacob Ruchti com Johnson em seu escritório de Nova York onde havia uma poltrona folheada a ouro em estilo renascentista francês, um objeto que estaria desde aquela época antecipando a composição do coroamento do edifício AT&T. Com a entrega do primeiro Pritzker a Johnson tornou-se difícil entender a justificativa da Fundação de premiar arquitetos que deram grande contribuição à arquitetura moderna.

Mas a Fundação surpreende, em 2003 o Pritzker foi entregue ao arquiteto dinamarquês Jørn Utzon (1918), cujo projeto da Casa de Ópera de Sidney o fez conhecido em todo o mundo. Utzon recebeu o prêmio em cerimônia realizada na Academia Real de Belas Artes de San Fernando, em Madri, Espanha, ocasião em que embolsou 100 mil dólares. Na lista dos agraciados está também o brasileiro Oscar Niemeyer (1907), que em 1988 dividiu o prêmio com o americano Gordon Bunshaft (1909-1990). Niemeyer e Utzon são arquitetos da periferia cultural do ocidente, o primeiro do mundo superdesenvolvido, o segundo do mundo subdesenvolvido, ambos serão sempre lembrados por terem integrado a arquitetura à paisagem e à cidade pelo seu valor e expressão escultórica.

A cada ano a cerimônia realiza-se em um país diferente e já foi entregue na Inglaterra, Japão, Itália, México, República Tcheca, França, Alemanha, Israel e, evidentemente, nos Estados Unidos, onde a importância que se dá à premiações é assunto de psicologia social. Embora a déia de premiar os que se destacam na sociedade não seja uma invenção americana, eles adotaram como se fosse uma instituição própria e para adquirir o caráter típico local foi superdimensionada, como fizeram com os edifícios de múltiplos pavimentos, o lixo ambiental e o cinema (que também não são invenções deles). Terra das patentes, o que é idéia original americana, promove notoriedade e mãos sujas, é a Calçada da Fama, onde figuras ilustres deixam suas marcas no cimento fresco. Essa devia ser a premiação para os arquitetos, muito mais pra eles do que para qualquer outra figura do star system. Na Calçada da Fama haveria a oportunidade primeira e única de alguns arquitetos porem a mão na massa.

Nos últimos anos a entrega do prêmio tornou-se absolutamente desinteressante. O anúncio, no início desse ano, que o prêmio seria concedido a Hadid e no Hermitage de São Petersburgo foi uma manobra com o objetivo de fazer o prêmio receber mais atenção do público reticente. Essa foi a primeira ocasião que o Hermitage serviu de palco para a entrega do Pritzker, tido como o Nobel (ou o Oscar?) da Arquitetura. O Hermitage de São Petersburgo, como a antiga Mesopotâmia, região de onde veio Hadid, é também um santuário de relíquias; a diferença é que as da Mesopotâmia testemunham o nascimento da civilização enquanto as de São Petersburgo revelam apenas o apreço pelo empilhamento que se não é o que levou a civilização ao seu ocaso é o que a fez tão feia. Depois da queda do regime comunista, a cidade imperial e seu patrimônio tornaram-se uma referência simbólica da nova classe que ascendeu ao poder no país, uma espécie de máfia neoczarista. Quem assistiu ao filme Arca Russa (Russkij Kovcheg, 2002), dirigido por Aleksandr Sokurov, tem uma idéia aproximada da situação. Os dirigentes e a inteligentsia local cultuam o mesmo estilo pré-revolucionário num país economicamente decadente, numa São Petersburgo agora famosa como capital criminal, centro do contrabando e narcotráfico da Federação Russa.

Essa é a primeira vez em que uma mulher é agraciada com o prêmio. Zaha Hadid é árabe, nasceu em Bagdá, Iraque. Obviamente não mora lá. Cidadã britânica, está radicada em Londres desde o início dos anos de 1970, cidade onde estudou arquitetura e formou-se na Architectural Association, em 1977, tendo antes estudado matemática na Universidade Americana de Beirute, no Líbano, em 1971. Na cerimônia de entrega do prêmio Hadid não agradeceu a Alá, mas lembrou da sua condição de mulher árabe e da importância dessa premiação para incentivar outras, como ela, a tentar alcançar sucesso e fama. Difícil uma mulher conseguir tanto vivendo no Iraque, na Tchetchênia ou em qualquer outro país mulçumano. Hadid finalmente vê realizarem-se na Europa, Estados Unidos e Japão seus projetos que durante muito tempo pareciam impossíveis de serem realizados mas adequavam-se muito bem a exibições de arte abstrata. Os projetos só saíram do papel nos últimos dez anos, vários ainda estão em obras. Premiada aos 54 anos, ela pode ser considerada uma arquiteta com poucas obras construídas, mas com uma fama superior às realizações. Conhecida pelos projetos desconstrutivistas, claramente influenciados pela vanguarda russa dos anos de 1920, notadamente Kasemir Malevich (1878-1935) e El Lisitsky (1890-1941), o primeiro ligado ao movimento Suprematista e o segundo ao movimento Construtivista, Hadid é uma arquiteta cuja importância ainda está por ser comprovada, não como exceção, um exotismo extravagante ou como uma contribuição teórica valiosa, mas como algo que se insira na história da arquitetura e deixe descendência.

Ela pode dar-se por realizada pois já construiu mais do que seus maiores inspiradores, Malevich e El Lisitsky. O presidente da Fundação Hyatt Thomas J. Pritzker justificou a escolha dizendo que “o trabalho da arquiteta garante um futuro promissor”. Lendo as palavras de Mr. Pritzker se pode erroneamente pensar que o prêmio é um estímulo para jovens arquitetos, o valor do premio é simbólico para quem nesse esquema está fadado ao sucesso. O presidente do júri, Lord Rothschild, comentou que ao mesmo tempo em que Hadid desenvolve os trabalhos teóricos, acadêmicos e exerce a profissão, ela assume e declara sua devoção ao modernismo. Tudo perfeito enquanto Bagdá dispensa apresentação. Não há um dia em que a cidade não figure na imprensa devido à guerra que os Estados Unidos estão fazendo pelo petróleo, pouca importância é dada aos tesouros arqueológicos que desaparecem lá e reaparecem em coleções particulares nos EUA e na Europa, é a pilhagem e rapinagem que sempre acontecem nas guerras imperialistas, dos Cesares a George Bush. No Hermitage a solenidade deve ter sido supimpa e, para atiçar a curiosidade dos que ficaram de fora e dos sempre cúmplices mass media, os organizadores jogaram um shador sobre a festa, o que colaborou com um adicional glamour diáfano e uma certa fantasia mítica, convenientes para a ocasião, nem secreta nem pública, restrita a uns poucos convidados mas transmitida pela internet.

Durante esses 25 anos de premiação a Hyatt Foundation namora e casa um arquiteto diferente a cada ano e assim vai ficando, ela mesma, cada dia mais virgem, sem que o seu defloramento se converta em benefício à arquitetura, mas em benefício próprio e dos personagens envolvidos. E se o arquiteto premiado nesse ano não foi lá grande contribuição ao desenvolvimento da arquitetura sempre haverá a expectativa do próximo ano, é disso que vivem as donzelas (3).
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LEGENDA DAS ILUSTRAÇÕES: (de cima para baixo)
- Medalha do prêmio Pritzker de Arquitetura. Divulgação.
- Philip Johnson. Foto: Bill Pierce, Time & Life Pictures, Getty Images.
- Zaha Hadid. Foto: Steve Double.

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NOTAS:
(1) Publicado originalmente em 04 de junho de 2004 no Arquitetura Brasil com o título O prêmio Pritzker e seus agraciados.
(2) Projeto Design. São Paulo: Arco Editorial. Edição 262, Dezembro 2001.
(3) Veja a lista completa dos premiados no site The Pritzker Architecture Prize.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. O Pritzker e seus agraciados. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].





terça-feira, 4 de setembro de 2007

A memória do teatro (1)

“O edifício teatral viverá sempre de valores abstratos” (2).

Lançado em setembro do ano passado (2002), Teatros – Uma memória do espaço cênico no Brasil, veio preencher uma lacuna da qual se ressentem os interessados em conhecer os teatros: a falta de referências bibliográficas, em português, sobre o assunto e que tenham como objeto de estudo os teatros brasileiros.

O livro traz 892 teatros dos 26 Estados e do Distrito Federal. Desses, 88 têm destaque especial, com textos exclusivos e informações técnicas detalhadas. É um farto levantamento do que há no Brasil, desde salas flexíveis, como o recém inaugurado Teatro Santa Cruz (São Paulo, SP) até os teatros históricos, como o Amazonas (Manaus, AM), passando por outros considerados “alternativos” pelas particularidades de suas instalações, como o Teatro Vila Velha (Salvador, BA), e as novas casas, como o Credicard Hall (São Paulo, SP), que caracterizam uma tendência de projeto de palcos mais voltados a shows, e não se prestam satisfatoriamente a espetáculos teatrais.

O teatro, como gênero artístico, é uma arte de “representação” e existe independentemente do edifício que lhe dê abrigo, pode ser encenado em qualquer lugar. A arquitetura, como gênero artístico, é uma arte de “realidade” e cria o espaço específico para abrigar uma atividade, no caso a encenação teatral. O teatro é, pois, o ponto de união desses dois gêneros artísticos. São, por excelência, considerados patrimônio da nossa cultura e os que Serroni nos apresenta neste livro têm a particularidade de ser uma pesquisa exaustiva (coisa rara no país) que não esgota o assunto e estimula a vontade de saber mais.

O livro abre os olhos do leitor para a realidade desses edifícios que são uma obra coletiva da sociedade, pois da sua idealização participam atores, técnicos, arquitetos, escritores, administradores, todos são operários na ereção de um edifício cujo epicentro, a caixa cênica é um espaço vazio a ser preenchido pelo espetáculo. Apesar da importância desses edifícios, alguns deles se encontram seriamente ameaçados pela própria dinâmica social onde o compromisso mais imediato é com o fazer e não com o preservar. O autor sabe disso e o seu trabalho é uma louvável contribuição à salvaguarda desses edifícios.

Arquiteto, cenógrafo, figurinista e artista plástico, Serroni realizou inúmeros projetos arquitetônicos para casas de teatro e cenografias para teatro, TV e publicidade. Participou da Quadrienal de Cenografia, Indumentária e Arquitetura Teatral de Praga - na República Tcheca em 1987, 1991 e 1995. Nesta recebeu o grande prêmio da Quadrienal: a 'Golden Triga'. Coordenou o núcleo de cenografia e figurinos do CPT - Centro de Pesquisa Teatral do SESC, dirigido por Antunes Filho. Hoje coordena o Espaço Cenográfico em São Paulo, onde ministra oficinas de cenografia, figurinos e adereços. Este é sua primeira publicação em grande formato, ele escreve também para o informativo Espaço Cenográfico News.

A conclusão a que se chega com essa leitura é da necessidade de renovação dos teatros no Brasil, o que não pode ser feito sem que o profissional arquiteto se especilize nesta área, torne-se um arquiteto cênico, na definição de Serroni, este é um intermediário entre os projetistas da obra e o espetáculo (p. 30). Com essa sonhada especialização teremos os profissionais instrumentados que podem modernizar as instalações físicas que permitam ao encenador recursos técnicos que valorizem o espetáculo em benefício do público.

Embora os valores abstratos do edifício teatral sejam componentes fundamentais de sua natureza artística, não se pode minimizar seus valores concretos, fundamentais de sua existência social. A renovação dos teatros no Brasil é um investimento imenso, cada uma das salas necessita de uma soma vultosa, o total do que todas elas necessitam é incalculável, já que os equipamentos necessários ao bom funcionamento de um teatro, geralmente importados, são muito caros e não há suficiente investimento em cultura. Como a maioria das salas pesquisadas pertencem à administração pública, em momentos de crise são as áreas que mais sofrem cortes, visto que já possuem o orçamento mais minguado. Hoje em dia essas salas não dispensam os investimentos da iniciativa privada, sem os quais viveriam numa ainda mais atroz insolvência. O livro mesmo serve de exemplo para a escassez de recursos destinados ao estudo do teatro e aos teatros em si. Originou-se como tese de graduação de Serroni na FAU-USP, em 1976. Durante todo esse tempo o material permaneceu inédito, há cerca de dois anos, finalmente, os recursos para a publicação foram conseguidos com o patrocínio de uma empresa de telecomunicações. O livro vem em hora oportuna, enquanto alguns desses teatros ainda estão de pé.

LEGENDAS DAS ILUSTRAÇÕES (de cima para baixo):
- Capa de Teatros – Uma memória do espaço cênico no Brasil.
- J. C. Serroni. Divulgação.
- Teatro Amazonas. Manaus, AM. Biblioteca do IBGE, Coleção Digital. Fotografias.

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NOTAS:
(1) Publicado em 17 de abril de 2003 no Arquitetura Brasil.

(2) RATTO, Gianni IN: SERRONI, J. C. (org). Teatros – Uma memória do espaço cênico no Brasil. São Paulo: Senac, 2002. P.17.
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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:
CRUZ, Cláudio. A Memória do Teatro. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Guia rápido de como se tornar um arquiteto famoso (1)

Por Sam Jacob (2)

MORTE AOS MANIFESTOS... VIVA OS FAÇA-FÁCIL!

Passo a passo um guia rápido de como se tornar um arquiteto famoso.
Isto não é um exercício de cinismo. É um guia que o ajudará a percorrer o estranho mundo do design. Ele o ajudará a alcançar o que você deseja, basta que você acredite em si mesmo.

Não é truque.
Veja abaixo como se tornar um arquiteto famoso.


Tornar-se um arquiteto famoso não demora muito, mas também não espere grande coisa.

Não é um passaporte para o mundo dos ricos nem uma entrada na alta sociedade. Mas se é isso que você deseja, aqui está o modo de fazê-lo.

Primeiro visite um relações públicas bem entrosado. Compre um exemplar de todas as revistas de design. Você precisará delas para descobrir o que não deve fazer.

Agora vá ao sebo da sua cidade. Compre um livro de design cheio de fotos. O sebo não é só mais barato, mas também possui um estoque de livros de pelo menos uns dez ou quinze anos atrás. Estes são os menos fashion e por isso mesmo os mais chocantes dos estilos. Você copiará seu design exclusivo desse livro.

No caminho de casa escolha o nome da sua empresa de design vanguardista. Algo vigoroso, artístico e meio bobo deve servir. Não existem muitas regras sobre isso, mas certifique-se de não usar “urbano” ou “estúdio”.

Seu nome irá adicionar uma imagem eficiente. Instale o escritório numa área da cidade que esteja em evidência e forme uma equipe de colaboradores dedicada. Ninguém desconfiará que, na verdade, você trabalha no seu quarto de dormir.

Agora que você tem um nome, precisa de um projeto. Tem que ser um projeto ousado de uma residência. Precisa ter um título atraente. Pegue uma palavra ou frase corriqueira, então adicione a palavra casa no final. Se soar bem, será boa. Copie algumas fotos do livro que comprou. Copie outras fotos que você gostar. Misture tudo na última versão do Photoshop. Mexa mais até conseguir uma nova foto que lhe pareça convincente. Certifique-se de que o resultado final não se pareça muito com as fotos das revistas.

Agora é hora de trabalhar seu carisma. Isso é importante porque é o que você está vendendo. Lembre-se, você não terá que projetar um edifício por dez anos, no mínimo. E neste tempo todo você viverá apenas do seu carisma, então capriche. Faça a fama e deite na cama.

Se você vem da Europa continental, ótimo. Se não, faça de conta que sim. O carisma deve sugerir política revolucionária e filosofia francesa. Mas não trate destes assuntos abertamente, eles não permitem boas cópias e farão confusão.

Para aparecer nas revistas você precisará escrever um release para a imprensa. Deverá transbordar carisma, conter um arremedo de política e filosofia, e ter o número do seu telefone. Conheça bem o seu público: os jornalistas. É importante não esquecer que os jornalistas especializados em design estão loucos por qualquer coisa interessante. Isso acontece porque arquitetura é um assunto quase sempre tedioso. Então seja interessante.

Faça reivindicações esquisitas, diga-lhes que tudo que eles sabem está errado e, mais que tudo, prepare-se para dar opiniões radicais sobre qualquer assunto tratado na conversa. Eles publicarão tudo e ainda lhe agradecerão. Envie seu release para as revistas por fax. Os números são aqueles impressos nos exemplares que você já adquiriu.

Ainda não é hora de descansar porque agora você precisa fazer os pacotes que vai enviar. Nos próximos dias você estará muito ocupado atendendo os inevitáveis telefonemas, então faça os pacotes com antecedência. Eles devem conter sua nova foto e um manifesto radical sobre design (viu como foi útil espalhar seu carisma?).

Quando o telefone começar a tocar você sabe o que fazer: use o nome de sua empresa de design vanguardista, o título excitante daquela casa e seu carisma para completar. Quando o telefone parar de tocar vá ao correio e envie os pacotes.

Agora pode relaxar. Dirija-se ao bar da moda dos arquitetos (você o reconhecerá pelo seu aspecto industrial reaproveitado, pelos tira-gostos mais caros do mundo e pessoas usando óculos estranhos).

Divirta-se, mas não se esqueça de manter o carisma. Tudo que você precisa fazer agora é colecionar todas as revistas em que você for notícia.

Bem-vindo ao mundo do design internacional.

LEGENDA DA FOTO:

Sam Jacob. FAT. Divulgação.
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NOTAS:

(1) Publicado em 28 de fevereiro de 2003 no Arquitetura Brasil. Título original: How to Become a Famous Architect. Traduzido por Cláudio Cruz. Colaborou Rosabelli Coelho.

(2) Sam Jacob é diretor do escritório ingles Fashion Architecture Taste Fat. Ele é professor universitário e também é editor de arquitetura de Contemporary, editor de Archis, escreve para Icon e Modern Painters.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. Guia Rápido de como se tornar um arquiteto famoso. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].

Uma anedota gentil (1)

O modernismo brasileiro chegou ao ponto final... A última página do modernismo está virada...


Com essas palavras um jornal noticiou no Brasil o falecimento do pintor Cícero Dias, ocorrido em 28 de janeiro de 2003, em Paris, como se um movimento artístico pudesse nascer e morrer como uma pessoa. Se assim fosse, tudo seria bem mais simples de ser explicado e entendido na história da arte.
Nessa nossa época em que alguém precisa decretar o fim de alguma coisa ou propor teoria para tudo, aqui não se pretende nem uma coisa nem outra, apenas contar uma “anedota gentil”, que nem é desconhecida, apenas andava esquecida. Com a morte do pintor convém relembrar o projeto de uma residência encomendada pela família Santos Dias a Le Corbusier, para ser construída no Recife, por volta de 1929.
Cícero era filho de uma família pernambucana que protagonizou um episódio que, se tivesse resultado em obra construída, possivelmente traria outro desdobramento ao modernismo arquitetônico brasileiro. Como até hoje este episódio espera ser devidamente estudado e divulgado, a sua revelação completa pode trazer alguns esclarecimentos sobre as origens da arquitetura moderna brasileira.

Das informações recolhidas sobre este projeto, podemos infeirir que ele já traria para o Brasil preocupações com o contexto, a paisagem e a cultura. Isso configura já uma adaptação do ideário racionalista ao ambiente local, ou seja, são preocupações embrionárias daquilo que, pela historiografia oficial, a arquitetura brasileira só começaria a desenvolver, aproximadamente, uma década depois com Lucio Costa e Oscar Niemeyer sob a orientação do mesmo Le Corbusier no projeto para o Edifício do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro.

Embora a arquitetura só possa ser obra construída, não se deve subestimar os princípios e as idéias que conduzem determinado projeto, é por conta destes princípios que a residência encomendada pela família Santos Dias desperta interesse.
A notícia foi publicada por Mário de Andrade em 1929 na coluna Táxi, do Diário Nacional, de São Paulo. Em 1997 quando Cícero Dias esteve no Recife para uma de suas muitas viagens nostálgicas pude entrevistá-lo. Com pouca memória para relembrar um fato ocorrido há mais de setenta anos, esta entrevista, publicada pela primeira vez na Revista Continente Multicultural confirma e completa com alguns dados a notícia de Mário de Andrade. (2)



Cláudio Cruz: "(...) No entanto uma anedota gentil fazem uns dois anos talvez, se tivesse outro final, faria Le Corbusier nesta viagem encontrar já uma construção dele no Brasil. Infelizmente pararam em meio as negociações entre ele e a família Santos Dias, do Recife, para uma construção de uma casa moderna à beira do Capibaribe. Foi pena. (...)"

O Senhor pode contar mais sobre essa história de Mário de Andrade?


Cícero Dias: (Mostrando várias cartas de Le Corbusier) Eu trouxe isso aqui pra mostrar a vocês a proximidade que eu tinha com ele. Por volta dessa época, de que trata o artigo de Mário de Andrade, ele não veio ao Recife, mas nós, eu e minha família, estávamos com vontade de fazer uma casa de Le Corbusier aqui. Tiramos muitas fotografias da cidade, o Pina, toda essa bacia foi fotografada, a rua da Aurora e uma vista geral de Olinda. Aquelas construções lacustres (sic), casas pobres sem nada. Nesse tempo ele estava trabalhando com os pilotis. Ele pensou em fazer uma casa na beira d'água. Para fazer o que ele tava pensando, uma casa de pilotis na beira do rio era um preço exorbitante, e parou por aí o negócio. Não se fez nada? Ele achou a bacia do Capibaribe-Beberibe uma coisa tão bonita. A vista que se tinha do Cais do Apolo, mais longe Olinda, o mar mais longe. Se recuasse a localização não era a mesma vista e aconteceria, como aconteceu, de passar uma estrada na frente e acabava-se a vista. Então tinha de se fazer na beira do rio.


CC: Que idade tinha o senhor então?


CD: Eu devia ter 19 anos. Era aluno da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, cursando arquitetura, uma turma depois da de Lucio [Costa] e antes da de [Oscar] Niemeyer. Fiz minha exposição em 1929, briguei com os professores e tive de abandonar completamente a arquitetura pela pintura porque o ambiente ficou muito desagradável. O Sr. Alberto Monteiro Aranha era amigo dele, tratamos com ele a possibilidade de fazer a casa sem trazê-lo aqui. Não havia avião, só navio, para não trazê-lo aqui ao Recife. Pegamos um fotógrafo e fez-se o levantamento fotográfico. Nós queríamos com vista para Olinda, para o istmo, para o mar, onde se vê a fortaleza do Brum. Ele se entusiasmou pelos mocambos, pelas construções lacustres. Ora, a construção lacustre era uma coisa primitiva, leve, sem suportar peso nenhum. Na hora de escolher o terreno a prefeitura já tinha uma estrada projetada. Nós ficamos com medo de construir do outro lado da estrada e poderia depois a prefeitura construir qualquer coisa na frente e esconder a vista. Aí a construção só seria interessante dentro do próprio rio porque você poderia estacionar embaixo uma lancha. Só que o terreno não merecia muita confiança porque era lama. Tinha de ser feita uma base de estacas enormes e pesadas. O preço disso foi proibitivo.


CC: O Senhor tem o desenho de Le Corbusier para esta casa?


CD: Não. Ele não fez um projeto. Ele rabiscou. Todo o material que eu tenho dele são essas cartas, isso mostra meu contato pessoal com ele. Pode tirar cópia pra você e ver o que pode aproveitar.


CC: Como é que surgiu a idéia de construir uma casa de Le Corbusier no Recife?


CD: Aí é que tá... Muita coisa, talvez a paisagem... Ele se entusiasmou pelo litoral, pela margem do rio. Ontem fui à Secretaria da Fazenda [do Estado de Pernambuco] e de lá você vê a cidade lembrando muito Amsterdã, São Petersburgo. Um quadro meu chamado Camboa do Carmo que vai ser exposto agora no Rio de Janeiro, pintado na década de 1930, retrata uma praça onde a água do rio ou do mar invade. O Recife possuía uma, que era a Camboa do Carmo, o Rio de Janeiro outra, que era a Praça Quinze, São Petersburgo até hoje tem quatro camboas, o Recife não possui mais porque foram muitos aterros.


CC: Especificou-se a Le Corbusier como vocês queriam a casa?


CD: Era uma casa normal, quero dizer, com três quartos, sala, cozinha, banheiro. Não era coisa grande. Uma casa de proporções burguesas... interessante. As palafitas ele já conhecia, sendo um arquiteto, pois essa é uma habitação da pré-história. Mas o que impressionou foi a paisagem, a mesma paisagem que entusiasmou Maurício de Nassau e a Conservadora do Museu de São Petersburgo que esteve comigo na Secretaria da Fazenda.


CC: Le Corbusier não demonstrou nenhuma preocupação social ao ver as palafitas do Recife?


CD: Eu vou lhe dizer o seguinte, eu não vou responder integralmente o que você tá perguntando, mas eu vou chegar lá... Ele desenhou perto de Marselha um conjunto simples de arquitetura, era uma coisa popular, e foi inabitável. A única coisa social que ele fez. Foi uma dessas máquinas de morar, inabitável. Não sei o que o governo francês fez com aquilo.


CC: O senhor lia a revista L'Espirit Nouveau?


CD: Sim. Le Corbusier queria destruir Paris para fazer avenidas. Ele não gostava de um urbanista francês chamado Agache, aquele que fez um projeto para o Rio de Janeiro, que ele achava um absurdo.


CC: A casa para o Recife teve a participação de algum outro arquiteto?


CD: Não, era ele sozinho, desenhou a lápis. Foi impraticável porque se fizesse a casa recuada, o sujeito defronte construiria outra na frente. Nós queríamos uma casa onde se avistasse Olinda, o istmo, o [bairro do] Recife com o Cais do Apolo, lá na Rua da Aurora, no fim, em Santo Amaro. Tiramos fotografia pra enviar para ele, da Fortaleza do Brum, do Cemitério dos Ingleses. Foi por ali por trás, pensando no lugar mais apropriado para construir a casa, porque já se pensava no futuro.


CC: Essas fotos da cidade foram entregues a Le Corbusier?


CD: Eu entreguei tudo a ele. Dei tudo a ele em 1928 [o ano exato foi 1929] no Rio de Janeiro. Ele pegou e ficou com tudo aquilo. Ele era meio maluco, ficou com aquilo andando de cima pra baixo.


CC: Nos arquivos da Fundação Le Corbusier, em Paris, nada consta em relação a esta casa no Recife.


CD: Não tem nada... Você podia me fazer um favor? Quando eu estiver em Paris, em maio ou junho, me manda uma cópia dessa notícia de Mário de Andrade pra eu procurar na Fundação Le Corbusier e reparar esta lacuna, mostrar isso e procurar saber se eles ainda têm as fotografias.


CC: Enviarei sim. Essa pesquisa precisa ser feita.


CD: Sim, pois não se pesquisa nada. A prova é que, por exemplo, o nome do Sr. Alberto Monteiro de Carvalho lá só é mencionado uma vez ou duas. É preciso que alguém vá à Fundação pesquisar, é possível que o material esteja lá, o que falta é dinheiro para essas pesquisas, essas fundações nunca têm dinheiro. Ele levou uma quantidade de fotografias enorme. Mas como eu disse, o temperamento dele não era fácil. Ele era brigão, meio malucão. A toda hora aparecem exposições com os desenhos dele. Com ele eu fiz parte do chamado Grupo Espaço. Nessa Fundação não se menciona nem uma vez o grupo. Era ele, (Fernand) Léger (1881-1955). Na fundação eu procurei o Grupo Espaço e não encontrei. Lá tem muita coisa sobre o Ministério da Educação. Sobre o Recife, nada. Precisamos reparar essa falta.

Resumidamente a história é a seguinte: Cícero Dias, estudante de arquitetura na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, a partir de 1925, toma conhecimento da obra de Le Corbusier, possivelmente com a leitura da revista L´Espirit Nouveau e pelas discussões na Escola. As idéias influenciam o jovem acadêmico e a família decide construir uma casa modernista no Recife, às margens do Capibaribe. Fotografam tudo na cidade e, em 1929, Cícero entrega as fotos ao arquiteto quando este visita o Brasil pela primeira vez, indo ao Rio de Janeiro e São Paulo. A casa foi simplesmente esboçada num papel e nunca foi construída devido aos motivos expostos por Dias.

O esboço nem as fotos da cidade jamais foram localizados, apesar das consultas feitas à Fundação Le Corbusier. Mário de Andrade foi quem primeiro noticiou o fato, mas o episódio foi esquecido por todo esse tempo. O livro Le Corbusier e o Brasil (3), publicado em 1987, fez um grande levantamento na Fundação dos documentos relativos ao Brasil, não há nele nenhuma citação da casa de Le Corbusier no Recife. Caso seja encontrado o tal esboço para a residência Santos Dias, essa lacuna no anedotário do modernismo arquitetônico brasileiro será finalmente preenchida. O texto de Mário de Andrade continua:

"(...) Mas em verdade a arquitetura moderna do que carece não é de pequenas construções e sim de grandes edifícios que a definitivem na consciência social(...)"

Esta carência de grandes edifícios não tardou a ser suprida. Oito anos depois, em 1937, estava em construção o edifício do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. Mas essa história já é bem conhecida de todos.



LEGENDAS DAS ILUSTRAÇÕES (de cima para baixo)
- Cícero Dias e Claudio Cruz. Foto Eduarda Belém.
- Le Corbusier, cerca de 1932. Divulgação.
- Indicação do local da residência da família Santos Dias no Recife, segundo Cícero Dias: (1) Olinda, (2) istmo, (3) Bairro do Recife, (4) Rua da Aurora, (5) Fortaleza do Brum, (6) Cemitério dos Ingleses. Foto Google Earth; Europa Tecnologies; Digital GLobe, 2007.

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NOTAS:

(1) Entrevista concedida em 26 de março de 1997, no Internacional Palace Lucsim Hotel, na Av. Boa Viagem, Recife/PE. Também participaram a Sra. Raymonde Voraz Dias, Eduarda Belém e Hilton Lacerda. Publicado originalmente na Revista Continente Multicultural. Ano 3, março 2003, edição nº 27 e em Arquitetura Brasil, 28 de maio de 2004.

(2) ANDRADE, Mário de. Táxi e Crônicas do Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo, Duas Cidades, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. P. 161-162.

(3) SANTOS, Cecília Rodrigues dos [et al.]. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela / Projeto Editora, 1987.

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COMO CITAR ESTE DOCUMENTO:

CRUZ, Cláudio. Uma Anedota Gentil. Heliográfica, online, Recife. Setembro/2007. Disponível: http://heliografica.blogspot.com/. Acesso em [usar formato dia/mês/ano].